Carlos Eduardo Costa Dos Anjos, ou melhor, Kdu Dos Anjos, como é conhecido, define-se como um entusiasta. Criado no Aglomerado da Serra, mora com os pais na vila Novo São Lucas, região Leste de Belo Horizonte, e é o terceiro de quatro irmãos. Aos 27 anos, ele é jovem de muitas profissões, dentre as quais é possível citar a de MC, poeta, compositor, ator, produtor cultural, empreendedor e gestor do Centro Cultural Lá da Favelinha.
Não seja a polícia a maior política pública. Que seja a educação, que seja a cultura, que seja o lazer, que seja a tecnologia, que seja o incentivo à sustentabilidade
Kdu dos Anjos
A entrevista com Kdu foi na laje de sua casa, que é seu lugar preferido, “inspirador”, por lembrar a ele uma casa na praia no sul da Bahia. Dela é possível ver boa parte da cidade de Belo Horizonte e também algumas partes do Aglomerado da Serra, o maior aglomerado de vilas e favelas de Belo Horizonte, localizado na região centro-sul da cidade e formado por sete vilas: Nossa Senhora Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Marçola, Santana do Cafezal, Novo São Lucas e Fazendinha. A própria paisagem parece refletir a imagem de Kdu, pois, assim como ele, a vista mostra a conexão existente entre dois espaços próximos da cidade, muitas vezes considerados distantes ou mesmo opostos.
Kdu é uma pessoa que não tem medo de mostrar para os outros quem realmente é, mas também é dono de muitas identidades, que ora parecem ser contraditórias, ora complementares. Sempre foi hiperativo e questionador, ao mesmo tempo em que é sensível. “Mas, na hora em que fica nervoso, também é bravo”, diz Conceição Costa Dos Anjos, 52, confeiteira, cozinheira e auxiliar de serviços na Favelinha. A entrevista com ela foi na cozinha de sua casa, com um tom descontraído e um leve toque de orgulho ao falar de Kdu.
Apesar de a humildade de Kdu ser visível, ele confessa que passa um pouco dos limites por falar demais, principalmente ao discordar de algo ou alguém. E, ao mesmo tempo, como diz o amigo e professor da oficina de ritmo e poesia na Favelinha, Claudinei Pereira de Souza, 32, mais conhecido como Bobnei, o MC é um apaziguador, devido à sua facilidade para resolver situações em que há conflito, como quando as crianças começam a discutir por algum motivo e é preciso chamar a atenção.
Com muitos sonhos, decidido e persistente, Kdu se diz multiplicador. Gosta de fazer as coisas acontecerem, procura fazer as pessoas acreditarem em suas próprias ideias e trata as coisas de uma maneira que não passem despercebidas aos nossos olhos. Apesar da coragem e convencimento, Kdu confessa que, vez ou outra, surgem dúvidas quanto ao seu futuro e projetos. “Tenho vontade de realizar muita coisa. E, se chegar a morte antes da hora, eu ainda quero deixar muitas outras para as pessoas fazerem, continuarem fazendo. Um sonho é eternizar a Favelinha”.
Lá da Favelinha
O Centro Cultural Lá da Favelinha é uma iniciativa independente e multicultural, que começou com uma biblioteca e uma oficina de rap. Localizado na vila Novo São Lucas, atende, diariamente, dezenas de crianças do Aglomerado da Serra. Para cobrir suas despesas, o centro cultural conta com uma plataforma de financiamento coletivo, o Evoé Cultural. Além dessa plataforma, possui outras fontes de renda, como a venda de produtos da Favelinha, a realização de eventos e de apresentações de artistas da comunidade.
Com a ajuda de voluntários que emprestam seus conhecimentos e equipamentos, o Lá da Favelinha oferece 15 oficinas gratuitas: teatro, comunicação, inglês, espanhol, capoeira, ballet, corpo e movimento, hip hop dance, percussão, violão, rap, artesanato, passinho, stencil, acro yoga e “troca de saberes” com o Cefet” (Centro Federal de Educação Tecnológica).
Além das oficinas, o centro cultural promove mais de dez eventos, dentro e fora da comunidade, para incentivar a ocupação dos espaços públicos, o empreendedorismo e a cultura. Dentre eles, podemos citar a Disputa Nervosa, o Favelinha Fashion Week, o Sarau da Favelinha e o Cine Clube Favelinha.
Em direção ao mundo da arte
Estudante de escola pública, Kdu era um aluno presente, até mesmo porque, como diz em tom de brincadeira, o serviço em casa era maior. Era o típico aluno que aprontava nas aulas, mas seus trabalhos se destacavam pelo potencial criativo. Kdu diz que sabia os momentos certos em que poderia aprontar para não ser prejudicado. Por isso, alguns de seus amigos diziam que ele tinha “duas caras”.
A escola o marcou pela experiência do contato com outras periferias e bairros. No Jocum (Jovens Com Uma Missão), teve a oportunidade de trabalhar com atividades culturais. E no curso técnico de formação gerencial do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) teve contato com pessoas de “diferentes artes”.
Entrou para o mundo da arte ainda na infância. Desde criança, foi apaixonado pela escrita, um bom leitor e demonstrava interesse pelo teatro. Quando começou a conhecer outros tipos de rap (ele conheceu primeiro o rap gospel), ouviu um menino dizer uma frase, trecho de música dos Racionais que o marcou: “Se quer guerra terá, se quer paz quero em dobro”. E diz que sentiu o impacto e a poesia do verso ao escutar o trecho. E esse momento foi determinante para descobrir seu encantamento pela poesia e pela música.
Sua trajetória foi construída com um espírito empreendedor, de “passinho em passinho” e com “um efeito dominó, como um modelo de consequências”. Hoje, sabe que tudo o que conquistou é fruto de algo que realizou no passado. E isso se reflete na sua agenda, construída no dia a dia em um ritmo em que “cada pedrinha que taca na água tem a onda, os círculos vão se expandindo e a força vai crescendo”.
Suas produções têm a marca de seus questionamentos e de sua sensibilidade e carregam a influência de personalidades que o inspira. Dentre essas, cita, com um tom e olhar de admiração, nomes como o rapper Mano Gu, filho de um dos principais cantores de rap de Belo Horizonte na década de 1990; Rogério Coelho, do Sarau Coletivoz; o trio Família de Rua; sua irmã, Ana Carolina Costa Dos Anjos; a designer de moda Helena Gondim, que é considerada uma madrinha do Lá da Favelinha; e o Raul Santiago, um miadiativista do Rio de Janeiro.
A partir do trabalho, tornou-se um exemplo para muitos. Mas, nesse processo, acaba dividindo a posição de admirado com a de admirador, assim como a de professor e aprendiz. Com isso, Kdu se vê cercado por pessoas que se inspiraram nele e que hoje o motivam diariamente, como sua mãe; seu pai, Wanderlei Alves Dos Anjos; Bobnei e sua família; a MC Teffy Angel; os passistas; os MCs da Favelinha e Úrsula, que é transsexual. E com um ar de orgulho diz que “essas pessoas estão começando a inspirar outras fora da comunidade”.
Como jovem ativista, Kdu busca dar oportunidades e mudar a realidade, principalmente, de jovens e crianças que moram no Aglomerado da Serra. Kdu percorre a cidade de um canto ao outro, fazendo um movimento em que “costura a cidade” com relações sociais e profissionais. “E, nesse caminho, a linha já está ali e vem alguém decorando a linha. Aí já vem três costurando a mesma linha. Costurando caminhos, uma rede que só vai ampliando. E é assim que a Favelinha ganha visibilidade e passa a ser reconhecida na cidade”.
Nesse sentido, a ocupação dos espaços públicos é outra bandeira defendida por Kdu. Segundo ele, a ocupação, tanto dentro quanto fora da periferia, deve ser incentivada, principalmente, para romper com determinados estereótipos que permeiam o meio social. Além disso, a ocupação é uma questão de direito e não deve ser relacionada com o poder aquisitivo. Até mesmo porque “a favela é uma fábrica de renda”. E defende que “não seja a polícia a maior política pública. Que seja a educação, que seja a cultura, que seja o lazer, que seja a tecnologia, que seja o incentivo à sustentabilidade”.
Ao pensar em sua relação com a cidade, Kdu reflete também sobre a clássica relação entre “centro” e periferia, entre “morro” e “asfalto”. Acredita que esse sistema segregador tem sido enfraquecido devido ao empoderamento social dos moradores da periferia. Mas ainda existem desafios a ser vencidos e um paradigma que precisa ser mudado. E isso pode ser feito a partir do (re)conhecimento da cultura periférica. Como diz Kdu, “a gente está deixando as pessoas brilharem com o que não é só capital. O nosso maior patrimônio é nossa voz, nossa inteligência, nossa capacidade intelectual. E o povo está se ligando nisso”.
Bobnei considera que o amigo Kdu é um elo, “capaz de entender a relação entre comunidade e centro, entre morro e asfalto. Ele mostra a realidade e consegue envolver “nós” e “eles”. E “eles” com o pessoal da comunidade, de uma forma simples, que é artística. Kdu é para quem desacredita”.
Nesse contexto, o Lá da Favelinha, segundo Kdu, “está se armando de informação, de poder, de ferramentas. É o vídeo, é a foto, é a rede social, é a música, é a poesia, é o rap, é o passinho, é a leitura, é a literatura, é a canção, são as idas e vindas, as conexões”. Assim, o centro cultural abre as portas para que o “centro” conheça e valorize a cultura da periferia e se torna “uma ponte de idas e vindas, concreta, forte, grande, que a gente está fortalecendo cada dia mais”, comemora.
Perfil escrito por Thaís Milani e originalmente publicado na revista Metáfora.