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Juliana Dal Piva: produtora de conhecimento político

Jornalista Juliana Dal Piva, mulher branca de cabelos escuros comprido, olhos pretos.

Juliana Dal Piva (Foto: UOL)

Em uma segunda-feira chuvosa, sentada à mesa de um restaurante durante o almoço em Belo Horizonte, a jornalista Juliana Dal Piva compartilhou comigo e com Júlia Vida, duas jornalistas em formação, detalhes preciosos sobre sua trajetória profissional e sobre “a Juliana pessoa”.

Foi brincando, lendo e escrevendo durante a infância que Juliana começou a se lapidar como jornalista. De São Carlos, interior de Santa Catarina, Juliana Dal Piva, 37, decidiu alçar voos maiores. Jornalista e escritora, já foi repórter de O Globo e colunista do portal UOL. Atualmente, é repórter do Centro Latinoamericano de Investigação Jornalística (CLIP) e do Instituto Conhecimento Liberta (ICL).

A carlaponitana faz e defende o jornalismo investigativo. Autora do livro “O negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro” e do podcast A vida secreta de Jair, Juliana ousou contar uma história dos bastidores da política brasileira em um dos períodos mais sensíveis ao ataque a jornalistas da história recente. Acompanhando a história dos holofotes, percebeu que não queria mais falar o que já era contado, quis trazer o que estava por trás das cortinas, quais eram as discussões dos personagem, quais eram as histórias reais ainda não conhecidas.

A jornalista

Do latim “luctor” a palavra luta, de acordo com o dicionário Priberam, pode ser definida como esforço e empenho, e é essa palavra que Juliana usa para definir sua trajetória. Ainda que com experiência de trabalho cobrindo diferentes áreas, a jornalista também enfrenta desafios para sua aprimoração e adaptação. Trabalhando em um portal de notícias independente, ela tem desenvolvido mais intimidade com a reportagem em vídeo, e vê como um desafio tanto a produção de conteúdo audiovisual como também a criação, pela primeira vez, de um time investigativo, com novas estruturas. “Mas estou realizando o sonho de montar meu próprio time e vê-lo jogar. Não é um processo fácil, mas é bom poder participar dessas novas estruturas”

O ponto central do jornalismo de Juliana é a construção de conhecimento. Ela prefere fugir da linha declaratória de apenas contar o que e quem falou. A jornalista gosta de voltar sua atenção ao significado da coisa dita e não focar naquilo que um personagem ou outro disse. Percebendo que, hoje, com as Inteligências Artificiais (IAs) esse trabalho de simplesmente descrever um acontecimento pode ser feito facilmente pelas máquinas, ela acredita que a tecnologia pode ajudar ou atrapalhar:

O bom uso pode ser de grande auxílio, mas as IAs também podem ser o maior inimigo de um trabalho não reflexivo, baseado apenas em declarações”.

Questionada sobre fazer um jornalismo ativista que parece estar em extinção, Juliana acredita que grande parte disso é falta de investimento das empresas em equipes investigativas e em seus repórteres para que esse jornalismo seja feito efetivamente. As métricas e audiências têm ditado o direcionamento do que é investido, de modo que parece só existir espaço para produzir jornalismo declaratório. “Isso é uma coisa que eu definitivamente não gosto. Eu me sinto emburrecendo”, declara Juliana

Na percepção de Juliana parece haver mais condições do que vontade em fazer jornalismo investigativo: “Há uma certa acomodação em um trabalho que não se gosta”. Juliana já esteve nesse lugar, já precisou fazer jornalismo declaratório, já esteve em situações em que era jogada para fazer coisas que não condizem com o que ela acredita, e a sensação de estar emburrecendo a fez buscar uma saída.

A jornalista acredita que o desafio está dado para o futuro do jornalismo:

É importante acompanhar de perto a evolução tecnológica e usá-lá, não deixar que torne obsoleto o profissionais do jornalismo, enfrentando, ao mesmo tempo, as questões estruturais para melhorar a qualidade nos ambientes de trabalho”.

Ela acredita que esse conjunto de ações vai fazer com que, automaticamente, os produtos finais sejam melhores, resultando em melhores reportagens, que não se limitem apenas às métricas de audiência. Dal Piva acredita que focar somente em números e métricas causa empobrecimento da profissão e da qualidade do produto jornalístico.

Durante a faculdade, Juliana fez um semestre do curso na Argentina, onde conheceu melhor a história latino-americana. Apesar de ter sido um curto período, a experiência foi muito intensa e importante para a sua construção como profissional. “O intercâmbio abriu minha mente para muita coisa, voltei com muitas referências”. Um dos diferenciais foi uma nova dimensão da história latino-americana.

Passei a enxergar a América Latina de verdade. Foi super importante pra mim. Olhar a América Latina. Eu mesma não via a América Latina”.

Com essa vivência na Argentina, Juliana teve muitas oportunidades pelo continente, tendo oportunidade de trabalhar no México, na Bolívia e na Colômbia. Isso foi, para ela, seu grande “abre-portas”. “É fundamental saber espanhol. Fundamental. Até pra você se comunicar, conhecer. E os jornalistas latino-americanos são muito bons. Na Colômbia tem trabalhos incríveis. Os mexicanos são muito bons também. Na Argentina tem muitos trabalhos muito bons também.”

A obra

Foi observando os bastidores da política nacional que Juliana Dal Piva produziu um livro envolvente, em que no enredo parece sempre estar contando uma história de faz de conta, mas os seus personagens são reais, feitos de carne e osso. “O Negócio do Jair: uma história proibida do Clã Bolsonaro” escrito por Juliana [no ano tal e publicado em ano tal], conta a história política do ex-presidente Jair Bolsonaro, tirando do baú histórias, até então, desconhecidas do grande público.

“Uma escultura”, é assim que a jornalista descreve seu processo de escrita: “Na primeira vez não vem tudo exatamente do jeito que se quer construir, então, vou jogando tudo o que vem à mente primeiro no papel, para depois lapidar o texto.

Sua escrita é precisa e acessível. Durante o processo de construção do livro, Dal Piva ficou na companhia da trilogia napolitana, ficcional, de Elena Ferrante, inspirando-se naqueles livros, para que a sua obra tivesse uma linguagem mais palpável.

A jornalista é minuciosa na sua escrita, e o livro oferece tantos dados que poderia ser exaustivo, mas vai na direção contrária. A checagem profunda e o compromisso com a apuração são fundamentais para o resultado final. Outra inspiração para esse processo são os documentários: é entendendo como são produzidos que se pode compreender a lógica por trás deles.

O processo de checagem é permanente. É intenso.”

Há uma semana da publicação do livro, durante uma das eleições mais acirradas da história do Brasil, Juliana ficou marcada por todo o furacão político à sua volta, mas também enfrentava um grande desafio em sua vida pessoal. Sua mãe precisaria passar por uma cirurgia delicada no pulmão. Trabalhando sem parar, e dividindo a rotina de cuidados com seus irmãos e seu pai, Juliana estava também sofrendo uma campanha de difamação devido à matéria em que revela que pelo menos 25 propriedades adquiridas pelo clã Bolsonaro ficaram sob investigação do Ministério Público do Rio e do Distrito Federal. A matéria foi censurada, a pedido do senador Flávio Bolsonaro (PL) à Justiça de Brasília, e a partir daquele momento (fim de agosto de 2022) até o fim do primeiro turno das eleições, Juliana viveu sob censura.

Apesar de sua mãe ter ficado bem e de ter vivido dias profissionais muito bons com o lançamento do livro, ela reconhece que teve que viver um momento pessoal muito difícil calada. “Só quem era mais próximo sabia de toda a situação. Mulher nenhuma pode ser fraca, né”.

Em relação à figura do ex-presidente, para a escritora não se trata simplesmente de um personagem criado para o público, tampouco de quem ele é nu e cru. Há momentos, conta Dal Piva que as ações de Jair Bolsonaro são uma performance em cena pública, para ser fotografado: “Há um ensaio e um roteiro, mas em muitos casos também há só a tentativa de ser um personagem”. Depois de toda a investigação para seu livro, a perspectiva da persona de Bolsonaro mudou muito para Juliana, e ela pôde perceber que o ex-presidente é um personagem muito mais complexo do que achava antes, “muitas vezes subestimado pelo seu jeito bruto”. Ele é violento, agressivo, racista, machista, homofóbico, mas ele também é agluém que faz esse personagem. E, ao mesmo tempo, também é meio medroso. Eu acho que é esse misto de coisas que me interessa também nele como personagem. Que é entender ele como um pouco de tudo isso”.

Além do jornalismo

Basicamente, eu gosto de um bom samba. Gosto de ter bons momentos com a minha família. E… Gosto de uma cachaça. E gosto de malhar.”

Pagode, samba, carnaval, cachaça, são hobbies de Juliana. Ela, que morou durante anos no Rio de Janeiro, criou um laço maior com esses hábitos cotidianos da cidade, e está se mudando para a Cidade Maravilhosa novamente.

Treinar e malhar são atividades importantíssimas para a jornalista: “Cuidar da saúde física e mental muda tudo na condução do seu trabalho, já que a gente precisa lidar com muita adrenalina, então, precisa ter onde gastar a ansiedade”

Se a gente não cuida da saúde mental e física, a pessoa não aguenta. A gente é uma máquina. Essa máquina dá pane, ela para.”

Mas foi só recentemente que Juliana aprendeu a gostar de malhar. No início deste hobbie, encarava mais como uma obrigação de adulta de cuidar de si mesma. Mas o treino acabou se tornando um momento só da Juliana, quando ela faz por ela o que mais ninguém poderia fazer. A história de amor pela academia começou com uma lesão no joelho. Depois de passar por isso, ela percebeu que precisava dar mais atenção e cuidar da sua saúde.

É o momento de ser só a Juliana. Eu boto a minha música ali, a minha Shakira. E aí também eu aprendi a me desafiar. Quando eu me sinto fisicamente forte, eu me sinto mentalmente forte. E dentro dessa confusão toda onde eu me meti, me sentir fisicamente forte foi muito importante, para me sentir mentalmente forte. Foi um processo de autoconhecimento também”.

Indo na contramão da cultura workaholic, distanciando-se da romantização da sobrecarga de trabalho, Juliana faz o possível para incluir na sua rotina os cuidados consigo mesma. Mas isso não é necessariamente fácil. “É um caos, há muitas entregas a serem feitas e é muito difícil manobrar tudo isso”. Além dos cuidados pessoais, há a vida de uma adulta funcional: “Tem roupa para lavar, casa pra limpar, é uma vida dinâmica”.

A profissão lhe permitiu realizar muitos sonhos, mas, hoje, a jornalista conta que os sonhos são muito mais voltados para sua vida pessoal .”Tem sonhos que eu quero realizar como Juliana, que são mais importantes do que ambições profissionais… Estou trabalhando com um veículo latino-americano que eu gosto muito, aprendendo muito com essas pessoas, então, eu realizei muita coisa profissionalmente”.

Um conselho

Para aqueles que estão chegando no mercado ou ainda estudando, o conselho que Juliana deixa é cuidado consigo mesmo. Malhar o cérebro e o corpo. “Não é uma apologia de ser gostoso, mas é um real cuidado com a mente”, explica a jornalista.

Malhar o corpo, porque vai ajudar a trabalhar melhor. Trabalhar muito não é o que vai fazer. Vai! Mas quem trabalhar cuidando bem da cabeça, vai trabalhar melhor. Vai ter mais força para aguentar. Vai adoecer menos, vai estar menos suscetível às doenças mentais, porque a profissão, infelizmente, coloca a gente frente a distúrbios dos mais variados. Pânico, ansiedade, depressão, burnout.”

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