Em 7 de setembro de 1972, no auge da ditadura militar, o país comemorava 150 anos de sua independência. O presidente Emílio Garrastazu Médici, em um gesto ufanista, não economizou em tentar mostrar aos cidadãos brasileiros, e ao mundo, todo o poder da nação. Conseguiu trazer, de Portugal, os restos mortais de D. Pedro I, que circularam por todas as capitais antes de seu sepultamento no Monumento da Independência, em São Paulo. Além disso, Médici também apoiou atos cívicos que tomaram o país, mostrando a força militar, a ordem e o “progresso” do regime vigente.
Cinquenta anos se passaram e a história parece se repetir, mas, dessa vez, como farsa. O atual presidente, Jair Bolsonaro, admirador declarado de personagens da ditadura, tenta reproduzir, a todo custo, a megalomania autoritária de décadas passadas. A chegada do coração conservado de D. Pedro I a Brasília, em 22 de agosto, para as celebrações do Bicentenário da Independência, somada aos esforços da realização de um grande desfile em Copacabana, provaram seu empenho em promover uma comemoração à altura do que foi o Sesquicentenário. Todavia, as tentativas de melhorar a imagem de Bolsonaro em ano eleitoral contrastam com seus flertes com um golpe de estado e sua saudação nada velada à ditadura militar.
A vinda do coração ao Brasil
A iniciativa do atual presidente de saudar a liberdade de seu país trazendo, por empréstimo, e sem revelar os gastos envolvidos, o coração do ex-colonizador, gerou uma gama de comentários em todo o mundo. Especialistas não economizaram nas críticas às ações de Bolsonaro, apontando paralelos históricos e até mesmo fazendo alusão às suas políticas durante a pandemia de covid-19.
Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga brasileira, fez duras críticas em sua conta no Instagram, e aproveitou para discutir o sentido deste feito. “[…] a quem interessa a vinda do coração de d. Pedro que está conservado em formol na cidade do Porto? Que tipo de história mórbida é essa que celebra pedaços de corpos de pessoas mortas faz tanto tempo?”, questionou. Em seguida, afirmou ser “Uma necropolítica por certo”, fazendo referência ao conceito que o professor camaronês Achille Mbembe discute no artigo de mesmo nome, “Necropolítica”.
Do outro lado do Atlântico, o sociólogo português João Teixeira Gomes escreveu comentários em um artigo para o jornal Público, desaprovando o ocorrido. “Um coração em formol será transportado para gáudio imenso do governo Bolsonaro, que aqui encontra a ocasião de um festim necrófago galvanizador da sua base de apoio, fazendo, em plena campanha eleitoral, como os ditadores romanos, a política de panem et circenses [pão e circo]”, afirmou.
Aliados de Bolsonaro, porém, apoiaram sua atuação. O ministro responsável pelo cerimonial do Itamaraty, Alan Coelho de Séllos, defendeu a vinda do coração do imperador e prometeu honrar o feito. “Será tratado como se Dom Pedro I fosse vivo entre nós, não é? Portanto, ele será objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”, declarou. Na mesma cerimônia, o presidente da Câmara Municipal da cidade do Porto, Rui Moreira, também defendeu a ida do coração a Brasília. “É muito importante também para Portugal porque ele foi uma figura crucial na afirmação da liberdade em Portugal. E para a cidade do Porto que eu aqui represento, porque foi ele também que nos libertou dos jugos que tínhamos e foi considerado pela população do Porto como rei soldado”, comentou.
A arqueóloga Valdirene Ambiel, em entrevista à RFI, criticou o uso político da viagem do coração ao Brasil e comentou sobre seu trabalho de análise dos restos mortais em 2012. “[…] em 1972 foi quando o corpo de D. Pedro foi trasladado para o Brasil, lamentavelmente foi usado de maneira política, durante o regime militar”. E enfatizou que: “O que eu observei 40 anos depois, em 2012, é que não houve respeito pelo ser humano, pelo estado em que encontrei o corpo de D. Pedro”. Episódio do podcast “O assunto” de 23 de agosto menciona que, por um erro de cálculo, a ossada não coube no local reservado e ficou, durante 4 anos, exposta sobre uma mesa.
Apesar das discussões problemáticas em torno da ação de Bolsonaro, o coração será ostentado com orgulho durante as comemorações de 7 de setembro. Além disso, também foi exibido na exposição “Um coração ardoroso: vida e legado de D. Pedro I” no Palácio do Itamaraty, que ficou disponível do dia 25 de agosto até hoje, dia 5 de setembro, para visitação de estudantes das escolas públicas do Distrito Federal durante os dias úteis e para o público geral somente nos fins de semana.
O bicentenário do 7 de setembro e as eleições
O patriotismo de Bolsonaro, expresso na exaltação das forças armadas em ano eleitoral, preocupa quem defende a democracia brasileira, como a mestre em História e professora da PUC Minas Jacyra Antunes Parreira comenta: “Atualmente, no Brasil, eu vejo os desfiles como forma de intimidação por parte do governo federal. E a população não me parece entusiasmada com a exibição das forças armadas”, disse.
No atual cenário, com forte polarização política, Bolsonaro se apropria do Bicentenário da Independência para autopromoção e espalha um clima autoritário. Em suas declarações, não perde a oportunidade de convocar apoiadores a irem às ruas no feriado. No dia 13 de agosto, por exemplo, declarou que: “No próximo dia 7, vamos todos às 15h estar presentes em Copacabana quando vamos dar um grito muito forte dizendo a quem pertence essa nação e que o que queremos é transparência e liberdade”. Em outro momento, em Juiz de Fora, no mesmo lugar em que levou a facada durante a campanha eleitoral de 2018, voltou a convocar apoiadores. “Nós respiramos liberdade. Nós não vivemos sem liberdade. E podem ter certeza, no próximo dia 7 de setembro vamos todos às ruas pela última vez… Comemorar, em um primeiro momento, a nossa independência. E, em um segundo momento, a garantia da nossa liberdade”, afirmou.
A incerteza é a principal arma dos discursos do atual chefe do executivo. Colocar as forças armadas para desfilar, naquela que é considerada a principal festa cívica do país, enquanto urra sobre liberdade para seus simpatizantes, soa contraditório à professora Jacyra Parreira: “A comemoração do Bicentenário da Independência do Brasil em 2022 está marcada pela incompetência do governo Bolsonaro, que imprime à data um ufanismo que não cola num país de desempregados e de famintos”. Ela acrescenta que, no atual contexto de eleições, “A multiplicidade de ideias é saudável, mas a polarização, cega”.
Retrospecto
Em 1922, no Centenário da Independência, o presidente Epitácio Pessoa exaltava o progresso do país. Na Exposição Internacional do Centenário da Independência, mostrava para o mundo os investimentos em modernização e expectativas para o futuro.
Em 1972, Médici promovia uma visão de um Brasil militarista e que ainda enxergava seu imperador como um herói benevolente. Também aclamava a cultura nacional e o progresso, apesar das controvérsias, principalmente devido à censura, violência e os graves problemas econômicos que o país viria a enfrentar por consequência da gestão durante a ditadura militar.
Já em 2022, Bolsonaro tenta mudar sua imagem depois de três anos e meio de uma gestão marcada por problemas e polêmicas que envolveram seu governo em casos de corrupção, desvio de verbas, má condução da pandemia, desinformação e falta de investimento em setores cruciais como educação e saúde. Também insiste em valorizar e enaltecer as relações coloniais com Portugal, mas, por outro lado, fomenta discursos sobre liberdade que inflamam seus apoiadores.