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Gramados em disputa: futebol brasileiro debate modelos natural, sintético e híbrido

Gramado natural do estádio Mineirão / Ian Lima

Nos últimos anos, a qualidade dos gramados tem se tornado um dos temas mais debatidos no futebol brasileiro. Enquanto alguns clubes e estádios optam pela grama sintética, outros defendem a manutenção do gramado natural. Mais recentemente, surge uma terceira alternativa: o gramado híbrido, que combina características de ambos. Cada um possui vantagens e desafios próprios, influenciando não apenas a qualidade do jogo, mas também a manutenção e a longevidade do campo.

Gramado natural: a tradição do futebol 

A grama natural sempre foi a principal escolha para os campos de futebol. Estádios icônicos como Mineirão, Maracanã e Morumbis mantêm esse tipo de gramado, valorizando a tradição e a jogabilidade. No Brasil, um dos grandes desafios é manter a qualidade do gramado natural durante toda a temporada, principalmente em estádios com uso excessivo para eventos e partidas.

O fisioterapeuta esportivo da base do Atlético Mineiro, Felipe Pereira, ressalta que, ao contrário do que muitos imaginam, a realidade dos gramados vai muito além da simples dicotomia entre natural e sintético: “Às vezes a gente coloca gramado sintético e gramado artificial como se fossem as únicas duas coisas que existem, mas o gramado natural também apresenta várias qualidades. Existe gramado natural com a grama mais alta, com a grama mais baixa, tipos diferentes, fina ou mais espessa. Tem campo que é natural, mas a grama está seca. Além da grama, tem a terra: se choveu, se fez sol, se está mais firme ou  macia”.

O Mineirão, oficialmente chamado Estádio Governador Magalhães Pinto, é um dos principais palcos do futebol brasileiro e está localizado em Belo Horizonte, Minas Gerais. O gramado do estádio é natural, composto por grama Bermuda Celebration, uma das mais utilizadas em estádios de alto nível por sua resistência, rápida recuperação e excelente desempenho em diferentes condições climáticas.

A manutenção do gramado natural exige práticas especializadas e constantes, como irrigação, adubação, corte regular, controle de pragas e aeração do solo. Segundo Otávio Goes, gerente técnico do Mineirão, um dos cuidados adotados é a instalação de uma manta plástica translúcida sobre a grama durante eventos não esportivos. “É como se fosse uma malha de apoio. Ela protege a grama contra o impacto de pessoas andando em cima dela e permite que a grama sobreviva 72 horas sem maiores problemas”, explica.

Outro ponto crucial na manutenção do gramado é a drenagem. “Tem um sistema de drenagem no gramado que funciona perfeitamente bem, foi dimensionado para isso”, afirma Goes, sobre o Mineirão. A estrutura é composta por camadas de areia e brita, que facilitam o escoamento da água para a rede pluvial, mesmo em dias de chuva intensa.

O cuidado vai além do sistema estrutural. A manutenção diária envolve irrigação, corte frequente e tratamentos específicos. “A gente tem um tratamento ácido que cuida do gramado todos os dias. Ele é irrigado todos os dias, e cortado dia sim, dia não. É um gramado muito bem cuidado”, relata. Além disso, uma empresa especializada é contratada exclusivamente para cuidar da grama do estádio.

Apesar do zelo, há críticas ocasionais – quase sempre condicionadas ao resultado em campo. “De time que ganhou, nunca tivemos reclamação. De time que perdeu, já. Mas isso é muito pontual, depende de cada um”, diz Goes, rindo. Ele garante que o gramado está sempre em condições ideais para o jogo, com laudos técnicos emitidos regularmente.

A grama natural, por ser um organismo vivo, exige atenção redobrada em relação a pragas. Segundo o gerente, os maiores desafios são fungos e larvas de mariposa, que atacam as folhas. “Dependendo da época de incidência, a gente toma cuidado de passar defensivos agrícolas no gramado para combater esses dois agentes”, explica.

Na comparação com os sintéticos, Goes reconhece que ambos os tipos de gramado exigem irrigação e drenagem, mas aponta uma diferença importante: a forma como interagem com o corpo do atleta. “O gramado natural, quando chega no intervalo ou no final do jogo, tem muitos buracos. Nas disputas de bola, o jogador força o pé, força a musculatura, e o gramado cede, amortecendo o impacto. Num gramado sintético, ele está igual do início ao fim”, analisa. Para ele, isso pode ter implicações na integridade física dos jogadores, ainda que ressalve: “Não sou médico, mas observei bem o gramado”.

A escolha pelo natural também tem uma razão histórica e institucional. “O gramado foi restaurado para fazer [jogos padrão] FIFA. O gramado tinha que ser natural, e a grama Bermuda Celebration foi a escolhida”, conta Goes. Além dela, no inverno, o Mineirão faz um processo de overseeding com a grama High Grass, o que garante cobertura adequada o ano todo. No passado, o estádio tinha outros tipos de grama natural, como Esmeralda e São Carlos. “O histórico do futebol é em gramado natural”, resume.

O jornalista, radialista, professor e mestre em administração Júnior Brasil lembra que o Mineirão já foi um campo de características marcantes: “O gramado do Mineirão, antigamente no Cruzeiro, era muito alto. Às vezes o pé do jogador até afundava um pouquinho. As equipes chegavam aqui tinham muita dificuldade de se adaptar a esse tipo de gramado. Ou seja, você pode criar uma dificuldade para um time adversário, mesmo sem ser grama sintética”.

Gramado verde de grama natural e ao fundo as arquibancadas do estádio Mineirão
Gramado natural do estádio Mineirão / Crédito: Ian Lima

Gramado sintético: a modernidade que divide opiniões

Os gramados sintéticos ganharam espaço nos últimos anos, principalmente em estádios como o Allianz Parque (Palmeiras) e Arena da Baixada (Athletico-PR). A tecnologia tem evoluído para oferecer mais conforto e reduzir impactos negativos.

Os gramados sintéticos têm se destacado por sua praticidade e resistência. Desenvolvidos com materiais como polietileno e polipropileno, esses gramados são projetados para suportar condições climáticas adversas e uso intenso. A manutenção de gramados sintéticos é significativamente menor em comparação aos naturais, representando cerca de 25% do custo de manutenção de um campo natural, conforme estimativas da empresa Soccer Grass. No entanto, a durabilidade desses gramados pode variar entre 5 a 10 anos, dependendo da qualidade do material, da intensidade de uso e dos cuidados de manutenção. Inovações recentes, como a introdução de fibras multidimensionais e tratamentos anti-UV, têm ampliado a vida útil e melhorando a estética dos gramados sintéticos, tornando-os mais realistas e resistentes ao desgaste.

A manutenção de gramados sintéticos é significativamente menor em comparação aos naturais, representando cerca de 25% do custo de manutenção de um campo natural, conforme estimativas da empresa Soccer Grass/ Crédito: Bruna Sarnaglia

Para Júnior Brasil, o gramado sintético pode oferecer vantagens, mas não elimina a necessidade de adaptação dos clubes: “Um grande exemplo de gramado diferente aqui no Brasil por um bom tempo era do Furacão, do Athletico Paranaense. E acredito que existe uma certa vantagem, porque no gramado sintético a bola corre mais rápido. Só que esse clube também tem que se adaptar a gramados que não são sintéticos. Ele joga metade dos jogos em seu campo e metade fora. Isso acaba sendo mais prejudicial aos clubes que vão lá”.

O ex-jogador Arthur Henrique também ressalta os riscos que o gramado sintético pode trazer para a saúde dos atletas: “O gramado sintético tende a ser mais duro, e com isso o risco de lesões aumenta consideravelmente. Com certeza, além do calor que o gramado sintético transmite, por ter borrachas de plástico, esquenta os pés, causando muitas bolhas. Eu tive duas lesões graves no meu joelho de LCA, e as duas foram atuando em gramado sintético. Obviamente que não é só o meu caso, como outros diversos que têm acontecido no futebol brasileiro por conta da grama sintética”.

Ou seja, apesar da resistência ao clima e da economia com manutenção (em média, 25% do custo de um gramado natural), os sintéticos são alvos de críticas quanto ao impacto físico nos atletas. Inovações, como fibras multidimensionais e tratamentos anti-UV, vêm buscando reduzir esses problemas.

Um jogador profissional que falou à reportagem em condição de anonimato , com experiência em diferentes tipos de gramado, oferece uma visão equilibrada entre os dois extremos: “Existe uma diferença entre jogar em um gramado sintético e um natural. Isso varia muito de jogador para jogador. Tem jogador que sente mais, tem jogador que sente menos. Eu acho que mais vale um sintético bom do que um gramado natural ruim. O ponto é trabalhar para que deixem de existir gramados naturais ruins, principalmente na Série A e Série B. Porque isso estraga o espetáculo”. 

O jogador reconhece que o campo sintético pode ser um pouco mais perigoso, já que a bola corre mais rápido e há maior chance de contato e impacto. Apesar disso, disse que, pessoalmente, “nunca senti tanta diferença física, só na velocidade do jogo”. Ele contou que alguns colegas percebiam sim essa diferença e criticou a situação dos gramados no país, afirmando que “o futebol brasileiro tem estrutura para resolver isso”. Para ele, é “vergonhoso ver jogos de alto nível em campos esburacados”, o que acaba prejudicando o desempenho das equipes. Embora admita que exista um risco maior no sintético, concluiu: “sinceramente, é melhor jogar num sintético bom do que num natural em péssimas condições. É algo que daria para resolver com boa vontade”.

Júnior Brasil aponta que as diferenças de solo também influenciam a escolha: “Existe um problema com relação à localização do campo era um brejo? Tem algo embaixo que dificulta a grama ter uma boa qualidade? Aí tem que colocar mesmo, é uma grama sintética”. Em termos de sustentabilidade, os sintéticos ganham destaque por não exigirem irrigação constante nem o uso de pesticidas e fertilizantes químicos.

Gramado híbrido: o melhor dos dois mundos  

A tecnologia do gramado híbrido tem se popularizado na Europa e começa a ser adotada no Brasil. O sistema mescla cerca de 90% de grama natural com 10% de fibras sintéticas, reforçando a resistência da superfície. Estádios como Santiago Bernabéu (Real Madrid) e Wembley (Inglaterra) já utilizam essa tecnologia.  

Os gramados híbridos, que combinam elementos naturais e sintéticos, surgiram como uma solução intermediária, buscando equilibrar os benefícios de ambos os tipos. Esses gramados geralmente consistem em uma base sintética com cobertura de grama natural, que mantém sua estética e conforto, mas que oferece uma superfície mais durável. A manutenção de gramados híbridos envolve cuidados semelhantes aos dos gramados naturais, como irrigação e poda, mas com menor intensidade devido à base sintética que proporciona maior resistência ao desgaste. A longevidade desses gramados pode variar, mas, com os cuidados adequados, podem durar vários anos, oferecendo uma alternativa viável para espaços que exigem alta performance e estética.

Na europa, os gramados são um exemplo do que há de melhor em tecnologia e tradição no paisagismo esportivo, unindo qualidade técnica às necessidades do futebol atual. O uso de gramados naturais acaba por indicar também prestígio e poder de clubes e estádios, já que exigem cuidados rigorosos com irrigação, iluminação e manutenção constante para preservar sua qualidade. Por outro lado, os gramados sintéticos são mais comuns em estádios de clubes menores ou em regiões com invernos severos, como na Rússia e na Escandinávia, já que oferecem resistência ao clima.

O uso desse tipo de gramado já é consolidado, como destaca Júnior Brasil, com exemplo de um estádio alemão: “Eu estive no estádio do Schalke 04 (Veltins-Arena), era uma coisa cinematográfica. O gramado saía, era retirado eletronicamente para fora do estádio para tomar sol. Às vezes, a estrutura do estádio não permitia devidamente o sol. Aqui no Brasil você não tem nada parecido.”

Os gramados híbridos proporcionam maior durabilidade e menor frequência de manutenção, mantendo o desempenho mesmo com uso intenso e diversas condições climáticas.

Lesões entre os gramados

Em episódio recente, no dia 13 de junho estado do gramado do Barradão foi um dos principais fatores que marcaram o empate entre Vitória e Cruzeiro, pela 8ª rodada do Campeonato Brasileiro. A forte chuva que atingiu Salvador deixou o campo em condições precárias, com acúmulo de água em diversos pontos e dificuldade para a bola rolar. A situação influenciou diretamente no andamento da partida e contribuiu para a grave lesão sofrida pelo lateral-esquerdo Jamerson, do Vitória, ainda no primeiro tempo.

Jogadores de Vitória e Cruzeiro em gramado natural do Barradão sob chuva / Crédito: Celo Gil

Aos 43 minutos, o meia Eduardo, do Cruzeiro, tentou um carrinho para disputar a bola, mas acertou a perna do adversário. O pé de Jamerson ficou preso no gramado molhado, o que aumentou o impacto da jogada. O jogador precisou ser retirado de ambulância e, após exames, foi diagnosticado com fratura e rompimento de ligamentos no tornozelo direito. Ele passou por cirurgia na mesma noite. Após o jogo, técnicos de ambos os times criticaram as condições do campo, e torcedores cobraram a CBF e a arbitragem por não suspenderem a partida. O caso reacendeu discussões sobre a responsabilidade dos clubes e da organização do campeonato na garantia de condições mínimas de segurança para os atletas.

Após o jogo, o técnico do Cruzeiro, Leonardo Jardim , criticou abertamente as condições do campo e relacionou diretamente o problema à gravidade da lesão. Em entrevista à Rádio Itatiaia, Jardim afirmou: “Infelizmente, não tivemos um bom campo para jogar. A drenagem estava péssima, o gramado completamente alagado. Isso prejudica o jogo e, mais grave, pode causar situações como a de hoje. Quando a gente joga num campo desses, as chances de lesões sérias aumentam muito.”

Sobre lesões em ambos os gramados, Felipe Pereira, fisioterapeuta, alerta que estudos são inconclusivos e que elas são multifatoriais: “Não há certeza de que um tipo de gramado causa mais lesões do que outro. A definição de lesão varia muito, e devemos considerar também a gravidade. Lesões são causadas por vários fatores: tipo de pisada, carga de treino, fadiga, genética, entre outros. Não dá para afirmar que o tipo de grama sozinho determina as lesões”.

O profissional ainda fala da importância da adaptação dos atletas a diferentes superfícies: “Se o atleta treina no gramado sintético e joga em gramado sintético, a tendência é que ele esteja acostumado e tenha menos risco. A mudança de uma superfície para outra precisa ser gradual, com adaptação no treino para evitar excesso de exposição”.

Pereira também comenta sobre as implicações técnicas e táticas das variações dos gramados para as categorias de base: “Campos com grama mais baixa e seca são mais duros e a bola pode ficar mais viva, dificultando passes longos para jogadores em formação. Os treinadores devem adaptar o estilo de jogo e plano de jogo conforme o gramado”.

Por fim, ele observa que, em geral, atletas mais jovens têm melhor recuperação e que, na base, a influência do tipo de gramado na recuperação ainda é pouco clara: “Não vejo muita diferença na recuperação entre tipos de gramado para jogadores da base, o que pode ser diferente em profissionais, mas isso ainda é muito empírico”.

O ex-zagueiro do Cruzeiro, Arthur Henrique, que atuou no clube entre 2013 e 2021, também valoriza as qualidades do gramado natural para o desempenho dos jogadores: “Na minha opinião, na grama natural você tem mais controle da bola, no piso sintético às vezes, por ser muito duro, a bola tende a quicar mais e assim você pode perder o controle dela muitas vezes. Muita diferença, o gramado natural é mais fofo, macio, e assim você consegue fazer movimentos naturais com mais fluidez”.

Copa do Brasil e os gramados em condição precária

Apesar de ser uma das competições mais importantes do calendário nacional, a Copa do Brasil ainda convive com um problema recorrente: a má qualidade dos gramados. Em diversas partidas, principalmente nas fases iniciais, o estado dos campos interfere diretamente no desempenho dos atletas e na fluidez do jogo. Buracos, desníveis, gramados irregulares e áreas com pouca grama têm sido frequentes.

Júnior Brasil critica a ausência de exigência mínima de qualidade: “A Copa do Brasil é um absurdo. 90 clubes que estão lá apenas para a CBF fazer média, com gramados que não dá. Cheios de buracos, sem drenagem, grama ruim. Isso prejudica demais. O Cruzeiro já enfrentou pastos, o Atlético já enfrentou pastos, América também. São gramados que se você for em gramados de futebol amador, eles são melhores”.

O formato democrático da competição, que permite a entrada de clubes de todas as divisões e regiões do país, é um de seus maiores trunfos — mas também escancara a falta de estrutura em muitos estádios. Enquanto alguns clubes conseguem manter campos em boas condições, outros, por limitações financeiras ou climáticas, não oferecem o mínimo exigido para um jogo de alto nível técnico.

A CBF já vem tentando padronizar critérios de qualidade, mas os esforços ainda são insuficientes. Jogos da Copa do Brasil televisionados para todo o país revelam gramados que mais atrapalham do que ajudam, comprometendo o espetáculo e até a integridade física dos jogadores. Para um torneio que distribui milhões em premiações e atrai os olhares do Brasil inteiro, os gramados deveriam estar à altura da competição.

O jornalista argumenta que os clubes da Série A são expostos a riscos físicos desnecessários:

“Você pega um jogador como Hulk ou Gabigol, que recebem milhões, para ir para um gramado cheio de buraco. Quando chove, vira uma poça. A drenagem não existe”.

Além disso, critica a omissão das federações e a falta de parcerias que poderiam melhorar os campos: “Eles deveriam ser vetados, não participar dessas competições. Tinha que ter uma seleção, respeito ao time, ao investimento. E encontrar formas de parceria para melhorar os estádios junto com as prefeituras e a iniciativa privada.”

Por fim, o jornalista também chama atenção para a cultura do futebol brasileiro e o impacto do calendário sobre os gramados: “Aqui é massivo. A grama é pisoteada duas vezes por semana, às vezes mais se outra equipe usa o mesmo estádio. E ainda tem shows que danificam o campo. Os clubes buscam receita, mas isso prejudica sim a grama”.

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Reportagem produzida por Bruna Sarnaglia com apoio de Ian Lima.
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