Frequentar a escola para além do ensino primário, cursar ensino superior, criar um partido político, votar, candidatar-se a cargos políticos, poder se divorciar, praticar qualquer esporte e dispor de leis que criminalizam todos os tipos de violência de gênero, são alguns dos direitos que as mulheres brasileiras, por meio de muita luta, conquistaram desde o século 19 até a atualidade.
Segundo a doutora em história Gláucia Fraccaro, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o movimento feminista foi fundamental para as conquistas. “Tem muito a ver com a organização das mulheres em movimentos mistos, na luta pela terra, na luta sindical e, também, por meio dos movimentos feministas. Os direitos à licença maternidade e igualdade salarial eram pautas do movimento de trabalhadoras e do feminismo.”
O feminismo é um movimento social que reivindica direitos sociais, políticos e jurídicos para as mulheres, de modo a alcançar a igualdade de gênero, propondo o fim da influência do patriarcado e do machismo na sociedade. A palavra feminismo deriva do termo em latim “femina”, que significa “mulher”.
As origens do feminismo se encontram na França, no período da Revolução Francesa (1789-1799), época marcada por luta organizada pela burguesia, com apoio dos camponeses, em oposição à elite monárquica que perpetuava desigualdades sociais, políticas e religiosas. Segundo Mariana Trindade, professora de história que produz pesquisas sobre gênero, os pilares ideológicos propostos pela Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) não se estendiam a todas as pessoas, e aquela realidade serviu como ponto de partida para a reivindicação das mulheres por direitos. “O feminismo começa a ser estruturado após a Revolução Francesa justamente por conta desses ideais de liberdade, igualdade, que não eram executados de maneira igualitária para homens e mulheres”, explica.
Um marco importante do início do movimento feminista se deu ainda no século 18, em setembro de 1791, quando a escritora francesa Olympe de Gouges escreveu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”. A motivação para tal feito – além da oposição à opressão imposta pelo patriarcado – foi a publicação da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, de 27 de agosto de 1789, que excluiu as mulheres da obtenção de direitos.
No Brasil, a publicação do livro “Direitos das mulheres e injustiças dos homens”, da educadora feminista brasileira Nísia Floresta, em 1832, representa a “chegada” e estruturação do feminismo ao país. O livro mescla a tradução da obra “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher” (1972) de autoria da escritora e filósofa feminista inglesa Mary Wollstonecraft, com reflexões de Nísia sobre a situação brasileira da desigualdade entre homens e mulheres.
Nísia Floresta foi considerada uma mulher à frente de seu tempo e uma das principais feministas do Brasil no século 19. Como educadora, ela desempenhou papel fundamental ao defender o acesso ao ensino acadêmico para as mulheres, ainda no século 19, período em que a educação, além de escassa no Brasil, era majoritariamente disponível aos homens.
Vertentes e ondas feministas
O feminismo, assim como qualquer outro movimento social, não é uniforme e alheio ao contexto histórico. Ele acompanha o tempo e suas particularidades e apresenta vertentes com demandas específicas e ondas que costumam classificar as pautas de maior foco da luta pela igualdade, de acordo com o período histórico em que ocorre. Dentre as vertentes do movimento estão: Feminismo liberal, Feminismo Marxista, Feminismo Interseccional, Feminismo Radical e Feminismo Negro. As ondas são divididas em três momentos, e alguns estudiosos do tema apontam que a quarta está acontecendo atualmente.
O artigo “A quarta onda feminista: interseccional, digital e coletiva”, das autoras Olívia Cristina Perez e Arlene Ricoldi, aponta que o movimento feminista vive a quarta onda atualmente. As autoras afirmam que o amplo uso das mídias sociais funciona como um suporte de maior propagação e aprofundamento de pautas já levantadas pelo movimento, principalmente relacionadas ao feminismo interseccional, além de novas pautas. As autoras também caracterizam a onda atual como de “ativismo amplamente digital”.
Mesmo essa classificação das fases do feminismo configurando importante mecanismo de compreensão do movimento com o passar dos anos, as ondas não ocorreram rigidamente no espaço temporal em que foram classificadas e nem todos os países as vivenciaram ao mesmo tempo, da mesma forma e nem nos períodos exatos em que foram observadas.
Preconceitos que provocam entraves
A falta de conhecimento sobre o feminismo, a propagação e representação equivocada – intencionalmente ou não – do movimento na mídia e o conservadorismo que rege a sociedade brasileira, são alguns dos fatores que contribuem para que muitas pessoas sintam aversão ao feminismo, interpretando-o como uma ideia radical, que preza pela superioridade das mulheres sobre os homens. Termos como “feminazi” – que faz alusão ao nazismo – e “mimimi” são recorrentemente usados para deslegitimar a organização das mulheres em prol de seus direitos.
Essa deslegitimação da luta feminista acontece em todo o mundo, mas no Brasil a pauta da igualdade de gênero ainda enfrenta muita resistêncial, mesmo com muito esforço despendido.
A pesquisadora Viviane Gonçalves Freitas, doutora em ciência política, aponta a ascensão conservadora como um dos principais entraves para a igualdade de gênero no país. “Se considerarmos os últimos anos, com a onda neoconservadora em sociedades democráticas ocidentais, vamos perceber que a desigualdade entre homens e mulheres tem encontrado campo para ampliar sua força, inclusive com apoio e sustentação estatal”, avalia Freitas.
A parte que cabe a elas na sociedade
Apesar de o feminismo representar papel central nas conquistas de direitos imprescindíveis na reivindicação por equidade e respeito, nem todas se materializam na realidade das mulheres brasileiras para diminuir as grandes desigualdades de gênero que as afetam.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), as mulheres representam mais da metade da população brasileira, compondo 51,8% do total de brasileiros. Porém, representar a maioria numérica não significa que as mulheres não ocupem o lugar de minoria social. Elas ainda têm menos oportunidades de emprego; recebem salários menores em comparação com homens que ocupam o mesmo cargo; percorrem caminhos mais longos até conquistarem cargos de liderança e gestão dentro das empresas; desdobram-se em jornada tripla, que compreende trabalhar fora, cuidar da casa e dos filhos; têm menos representatividade na política; além de estarem exposta a diversos tipos de violência.
Foi a partir da Constituição Brasileira de 1988 que as mulheres passaram a ser consideradas juridicamente iguais aos homens. O artigo 5º da Constituição declara que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Um marco de grande relevância para a luta das mulheres pela igualdade de gênero e por uma sociedade melhor para todos.
A promulgação do documento abriu caminhos que propiciaram conquistas de direitos indispensáveis para as mulheres – a maioria delas no decorrer dos anos 2000. Uma das de maior notoriedade é a Lei Maria da Penha, responsável por criminalizar a violência doméstica e familiar contra a mulher, sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A lei leva o nome de Maria da Penha, uma farmacêutica bioquímica que, em 1983, foi vítima de dupla tentativa de feminicídio cometida por seu então esposo, Marco Antonio Heredia Viveros, que atirou em suas costas enquanto ela dormia. Após o fato, Maria da Penha ficou paraplégica e lutou por anos para conseguir justiça.
Em 9 de março de 2015, durante o segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), entrou em vigor a Lei do Feminicídio. A lei criminaliza o assassinato de mulheres em função do gênero e ainda qualifica o crime como homicídio qualificado, com pena que pode variar de 12 a 30 anos de prisão. O feminicídio também foi classificado como hediondo ao ser inserido na lei que caracteriza crimes hediondos.
Em 2018, a luta das mulheres avançou mais um pouco. A Lei da Importunação Sexual, de autoria da ex-senadora Vanessa Grazziotin, foi sancionada em 24 de setembro de 2018, pelo ministro Dias Toffoli, que na época era presidente do Supremo Tribunal Federal e assumiu o cargo de presidente de forma temporária, devido a uma viagem do então presidente Michel Temer para o exterior. Ela criminaliza atos de cunho sexual, como toques e beijos, sem o consentimento da outra pessoa e a venda ou divulgação de mídia audiovisual que contenha cena de estupro.
Ainda que tenham sido de grande importância a conquista desses direitos que visam à proteção da mulher e sua dignidade, infelizmente os casos de violência doméstica e familiar ainda são diários e atingem números altos. Dados da Polícia Civil de Minas Gerais revelam que em 2020 foram registrados 149.347 mil casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e 147 casos de feminicídio no estado. Já em 2019, Minas Gerais registrou 150.871 mil casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e 144 registros de feminicídio.
Belo Horizonte registrou, em 2020, 16.756 casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. No ano anterior, a capital havia registrado 18.863 mil casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Atualmente Minas Gerais, que tem 853 municípios, conta com apenas 71 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (Deams).
Embora os dados de violência contra a mulher no ano de 2020 tenham apresentado uma leve queda, a delegada Carolina Bechelany, chefe do Departamento de Investigação, Orientação e Proteção à Família da Polícia Civil, não descarta a hipótese de que houve subnotificação nos registros. “Em Belo Horizonte, obtivemos expressiva queda de registros em 2020 se comparado a 2019, que pode ser interpretado como subnotificação, já que estamos vivendo uma pandemia, período em que foi recomendado que as pessoas não saíssem de suas casas. Não podemos, também, descartar a possibilidade de que a queda de registro seja realmente reflexo da diminuição da violência contra as mulheres na capital”, elucida.
A assistente social Pedrina Gomes, que atua na Casa Tina Martins, espaço que oferece apoio psicológico, jurídico e social às mulheres vítimas de violência, conta que no ano passado o número de denúncias presenciais espontâneas foi inferior em comparação com 2019, mas que as denúncias realizadas por terceiros aumentaram. “Os casos de demandas espontâneas presenciais diminuíram. O aumento foi mais significativo em relação à vizinhas, amigas, parentes e patroas buscando formas de fazer denúncia de casos de violência contra a mulher”, explica.
Segundo a assistente, o principal motivo para as denúncias espontâneas terem diminuído no último ano é a presença mais frequente do agressor, que na maioria das vezes é o companheiro, em casa devido ao isolamento social. Ela também aponta outro motivo responsável pela redução das denúncias: “Outro fator é o desemprego associado à falta de condições econômicas e sociais. Além da instabilidade social e psicológica causada pelo isolamento”.
Pedrina considera que a lei ainda é falha por não assegurar mais assistência às mulheres vítimas de violência. “Não temos a “Casa da Mulher Brasileira”, que é um importante equipamento de atendimento humanizado e especializado à mulher em situação de violência doméstica previsto na Lei Maria da Penha. Em Minas Gerais não temos nem cinco abrigos; temos Deams (Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher) em uma média de 70 municípios no estado. O problema é bem mais profundo”, observa.
Para a assistente, as leis sozinhas não são suficientes para dizimar esses problemas que têm raiz na cultura vigente: “Enquanto vivermos em uma sociedade misógina, patriarcal e capitalista, que coloca a mulher enquanto um “produto”, as ações serão paliativas e não mudarão estruturalmente a forma como a sociedade lida com a violência”. Na visão de Pedrina, esses problemas só acabarão quando houver uma profunda mudança estrutural no modelo social vigente para garantir que as mulheres tenham de fato a equidade de gênero em todos os âmbitos sociais.
Mulher no Mercado de trabalho
No Brasil, as mulheres começaram a entrar no mercado de trabalho ainda no século 19, no contexto fabril. Já na primeira metade do século a presença feminina no mercado de trabalho tornou-se cada vez mais frequente, uma vez que com o deslocamento dos homens para a guerra as mulheres representavam a maior parte da mão de obra disponível.
Embora já houvesse mulheres no mercado de trabalho na primeira metade do século 20, esse direito não era concedido a todas e o trabalho feminino ainda carecia de leis que o legitimasse e regulamentasse. Para se ter uma ideia de como o Brasil é atrasado no que tange a participação das mulheres no mercado de trabalho, até 1962 as mulheres casadas só podiam trabalhar se o marido autorizasse e essa autorização ainda era passível de revogação a qualquer momento. Isso era permitido por lei porque o Código Civil de 1916 considerava as casadas “incapazes” de exercer tal função.
O código também não permitia que mulheres casadas tivessem conta bancária e nem estabelecimento comercial. Até que em 1962, o então presidente da república João Goulart sancionou a Lei do Estatuto das Mulheres Casadas, que foi responsável por anular as proibições de trabalhar, ter conta no banco e ter o próprio negócio e instituí-las como direitos.
Mesmo com a conquista de muitos direitos, a maioria relacionados à gravidez, como a aposentadoria e até mesmo o direito à equiparação salarial – que não é amplamente cumprida entre os empregadores, o mercado de trabalho é um dos campos onde mais se observa a disparidade entre homens e mulheres.
De acordo com o IBGE, somente no quarto trimestre de 2020 a taxa de desemprego entre as mulheres era de 52,9%, porcentagem maior que a dos homens cuja taxa era de 47,1%. Ou seja, das mais de 100 milhões de brasileiras, mais de 53 milhões estavam desempregadas nos últimos três meses do ano passado. Esse dado só evidencia que as mulheres são as mais afetadas pela pandemia de Covid-19 que só acentuou a desigualdade de gênero no país.
Apesar de trabalharem cerca de três horas a mais que os homens – combinando empregos remunerados, tarefas do lar e cuidados de pessoas – as mulheres recebem em média apenas 76,5% do que os homens ganham, como apontado no estudo de Estatísticas de Gênero de 2018 do IBGE. Em termos de nível superior completo, as mulheres também superam os homens, mas enfrentam dificuldades de inserção no mercado.
No Brasil, 25% das mulheres, entre 35 e 34 anos, têm o ensino superior completo enquanto 18% dos homens, de mesma faixa etária, têm o mesmo nível de escolaridade, segundo dados de 2018 apresentados pelo relatório “Education at Glance 2020”, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Desempregada a cerca de um mês, a mecânica automotiva Anna Carolina Batista, 24, é mais uma mulher a enfrentar o desemprego no país. Após pedir demissão na oficina onde trabalhou por dois anos para tentar uma oportunidade melhor em outra, foi demitida em decorrência da pandemia. “O fluxo de clientes caiu bastante. Então, ficou complicado para o meu chefe manter dois empregados, sendo que um só era suficiente para atender a demanda de serviço nesse momento”, relata Anna.
Atuar no mercado de trabalho informal foi a solução que a mecânica encontrou para se manter. Ela agora faz bicos em uma empresa prestadora de serviço para seguradoras veiculares, em Belo Horizonte e região metropolitana. “Faço socorro automotivo com a minha moto, faço enxerto de bateria e troco pneu quando tenho chamado”, explica. Anna ainda aponta algumas vantagens e desvantagens intrínsecas do novo trabalho e expõe o sentimento de incerteza. “Tem a possibilidade de superar a minha renda de antes, mas isso depende muito de como eu vou trabalhar. Para isso, eu preciso pegar serviço às 07h e só largar de noite, além de precisar trabalhar sábado e domingo. Quando a gente faz bico, a gente pira, porque não tem segurança, estabilidade que a carteira assinada proporciona”, explica.
Um relatório produzido pela Global Gender Gap Report 2020, que analisa a paridade de gênero na participação econômica e oportunidade, realização educacional, saúde e sobrevivência e empoderamento político em 153 países, concluiu que a igualdade de gênero entre homens e mulheres em todos as áreas sociais não acontecerá antes dos próximos 99 anos (média global) levando em consideração a estrutura social atual do mundo.
Mulher na política
A participação das mulheres na política é uma das reivindicações mais antigas do movimento feminista no Brasil. Ela começou logo após a proclamação da república, em 1888, já que as mulheres consideraram que a mudança no regime governamental do país abriria portas para outras mudanças, incluindo as de interesse delas próprias. Mas essa mudança não se tornou realidade tão cedo, já que a Constituição de 1891 não concedeu o direito ao voto para as mulheres.
Assim, em 1910, é que surge o primeiro partido político feminino do Brasil: o Partido Republicano Feminino, criado pela professora Leolinda Daltro (1859-1935) que exigia o reconhecimento das mulheres como cidadãs e suas respectivas independências. O partido, fundado no Rio de Janeiro, teve papel fundamental na reivindicação do direito ao voto para as mulheres. Somente 22 anos após a criação do Partido Republicano Feminino, em 24 de fevereiro de 1932, que as brasileiras conquistaram o direito ao voto e a se candidatarem a cargos políticos.
Mas de início esse direito não se estendia a todas as mulheres, ele limitava-se a atender somente as viúvas que possuíssem renda própria e as casadas, com idade acima de 21 anos, que tivessem autorização do marido para tal – requisito que revela a visão que a sociedade ainda tinha da mulher, como um objeto de posse do companheiro, que devia tomar as decisões por ela. Além de condicionar a participação política da mulher, a lei que instituiu o direito era muito excludente ao não permitir que solteiras, analfabetas e pobres elegessem suas representantes aos cargos políticos.
Foi com a promulgação da Constituição de 1934 que todas as mulheres brasileiras alfabetizadas, acima de 18 anos e independentemente do estado civil, puderam eleger representantes aos cargos políticos. Nesse período, a lei permanecia defasada ao restringir o voto apenas às mulheres alfabetizadas. Doze anos mais tarde, em 1946, o voto se torna obrigatório para todas as brasileiras alfabetizadas (antes era apenas exigência para funcionárias públicas), e só em 1988 ele se estende às mulheres analfabetas.
Mesmo sendo um direito importante e indispensável de exercício da cidadania, o direito de votar e concorrer a cargos políticos não necessariamente representou rápidos e grandiosos avanços para que os interesses e necessidades das mulheres fossem legitimados e respeitados. Isso ocorre devido a baixa representatividade da mulher na política, que além de ser um meio majoritariamente composto por homens, nem sempre apoiou e incentivou as mulheres a participarem mais ativamente da política. A pesquisadora Flávia Biroli, cientista política e professora da Universidade de Brasília (UNBnb), considera extremamente necessário que as mulheres estejam inseridas nos espaços de tomadas de decisões para que os interesses e necessidades desse grupo sejam atendidos a fim de proporcionar um contexto de vida melhor e a igualdade de gênero.
Mas, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 2020 as mulheres compunham 52,49% do eleitorado brasileiro, porcentagem que representa mais de 77 milhões de brasileiras. No entanto, essa maioria não está nem perto de representar o percentual de mulheres dentro dos espaços políticos governamentais. Nas eleições de 2020, foram registrados 557.406 mil pedidos de candidaturas, desse total as mulheres só representaram cerca de 34% das solicitações de candidatura, pouco mais de 180 mil.
Flávia, assim como Viviane Gonçalves Freitas, doutora em ciência política e professora da UFMG, consideram que o machismo presente na sociedade brasileira impede que muitas mulheres participem da política se candidatando a cargos públicos.
“Se as mulheres são vistas, muitas vezes, como inadequadas para desempenhar várias funções na sociedade de modo geral, a resistência dos partidos [em aceitar mulheres que queiram se candidatar] pode ser considerada como um espelhamento disso também. Outro ponto é que às mulheres são atribuídas como naturais às funções do ambiente doméstico, de reprodução da vida, como cuidado com crianças e idosos, preparo de alimentos e limpeza de ambientes, o que demarca uma separação entre o ambiente privado (da casa, da família) e o ambiente público (trabalho remunerado, atividades de representação política”, explica Viviane.
Ela também aponta que, uma vez inseridas no ambiente político, as mulheres enfrentam dificuldades de permanência nesse espaço: “As mulheres candidatas e eleitas acabam sofrendo com a violência política de gênero, o que tem a intenção de reforçar que aquele não seria seu lugar”. O caso de importunação sexual sofrido pela deputada estadual Isa Penna (Psol) durante sessão na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) é exemplar dessa situação.
Cotas para mulheres
Desde 1995, o Código eleitoral brasileiro adotou um sistema de cotas para a ampliar a participação política das mulheres nos cargos públicos. Esse sistema passou por várias atualizações ao longo dos últimos anos de modo a aperfeiçoar a lei e eliminar as brechas usadas pelos partidos políticos para burlar a efetividade da participação feminina na política. A primeira lei de cotas, de 1995, estabeleceu que cada partido separasse 20% das vagas de candidatura ao cargo de vereador para as mulheres.
Dois anos mais tarde, essa lei foi substituída por outra que – vigora até os dias atuais – exigia que os partidos reservassem 30% das vagas de candidatura aos cargos de vereadora, deputada estadual e deputada federal para as mulheres. Mesmo com a existência da lei de cotas, que nas últimas décadas contribuiu para ampliar a presença das mulheres nos espaços políticos, ela ainda enfrenta algumas barreiras que a impedem de ser mais eficaz para assegurar a paridade de gênero entre homens e mulheres na política.
Flávia Biroli aponta que o sistema de lista aberta é um dos entraves para a total eficácia da lei, aliado a brechas encontradas na redação do documento. “No caso do Brasil, a nossa lista é aberta e, inicialmente, a redação da legislação, definia que os partidos políticos precisavam reservar no mínimo 30% para um dos sexos, então eles entenderam que reservar não implicaria em preencher e eles nem preenchiam. Com isso, só em 2010 chegamos em um valor próximo dos 30% de candidaturas e só atingimos esse percentual em 2014, porque em 2009 houve uma mudança na redação da lei que passou a dizer que era necessário preencher essa porcentagem com candidaturas, ao invés de apenas reservar. Então, os partidos passaram a poder ser punidos quando eles só reservavam e não preenchiam”, explica.
Segundo Flávia, a falta de recursos para arcar com as despesas das campanhas eleitorais das mulheres, que até três anos atrás era frequente, dificultava a realização das candidaturas e também contribuiu para atrasar os efeitos propostos pela lei de cotas. “A mudança maior veio de fato em 2018, quando a lei passou a definir que esses 30% de candidaturas femininas deveriam ser acompanhadas de recurso que consistem em reserva de 30% do fundo eleitoral partidário para financiar essas campanhas e tempo proporcional de horário eleitoral gratuito de propaganda na TV e no rádio”, observa.
Na contramão do Brasil, Flávia destaca a Argentina e o México como dois países que, ao adotarem a legislação de cotas, conseguiram atingir a paridade de gênero na política. Em ambos os países, essas legislações foram complementadas ao longo dos anos, assim foi possível construir coalizões multipartidárias que trabalharam juntas em direção à aprovação da igualitariedade política.
Já Viviane Freitas pondera que uma mulher eleita a cargos políticos não necessariamente terá agenda focada nos direitos das mulheres: “Na eleição de 2018, por exemplo, muitas das parlamentares eleitas para atuar no Congresso Nacional, passaram a levantar bandeiras mais conservadoras”.
Freitas considera que o primeiro passo para combater a desigualdade de gênero consiste em educação disruptiva iniciada na infância. De acordo com ela, oferecer bonecas e eletrodomésticos em miniatura às meninas cria um imaginário de que o ambiente doméstico é destinado a elas, e quando se oferece carrinhos e aviões aos meninos, o imaginário deles é ampliado com funções e ambientes além do doméstico para serem conquistados.
*Colaborou Yagho Nikollas