Com a ampliação do número de estádios pelo país, “arenização” dos espaços, transformação de clubes em empresas, salários exorbitantes para os jogadores e campeonatos transformados em megaeventos, o futebol está se transformando em uma modalidade cada vez mais cara. Esse processo tem afastado o torcedor tradicional e de baixa renda e modificado a identidade cultural das torcidas.
Se um torcedor desejar ser exemplar e acompanhar quase tudo do seu time, como frequentar estádio duas vezes ao mês, ser sócio-torcedor, comprar a camisa de jogo, assinar serviços de streaming que transmitem os jogos, o custo pode chegar a R$750 por mês e R$9 mil por ano. Isso equivale a 14 dias de trabalho, quase 50% do salário mínimo (R$1.518). Se o torcedor morar fora da cidade dos estádios, este valor pode ser bem mais alto.
Ingressos entre R$60 e R$250
Para os frequentadores de jogos em estádio, o valor do ingresso pode variar entre R$60 e R$250, no caso do Campeonato Brasileiro – e sem contar as áreas VIPs e camarotes. Se somarmos ao valor do ingresso o consumo e o transporte, o custo pode ser ainda maior. Considerando que a entrada tenha custado R$100, o transporte ou estacionamento – cerca de R$60 no Mineirão – e o consumo de alimentos e bebidas – R$20 para o tradicional tropeiro e R$12 para um copo de cerveja -, o investimento para apenas uma partida seria de quase R$200 por pessoa.
Conforme o doutor em Comunicação Francisco Brinati, que é pesquisador de comunicação e esportes e professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), esse processo afasta muito os torcedores tradicionais, que constituíram a base de apoio dos times. “Muitas equipes se denominam como o time do povo. Só que, na verdade, esse time do povo está com uma arena multiuso, em que os ingressos saem acima de R$150 ou R$200, e que a maioria da população brasileira, da classe trabalhadora, não consegue acompanhar uma rotina de jogos aos finais de semana e meio de semana. Então nisso você vai perdendo a identidade do torcer. Vai transformando, ressignificando esse torcer.”

Brinati explica que os altos custos acabam expulsando alguns torcedores. “As arenas acabam ficando destinadas a um público que não é aquele torcedor mais tradicional. Passa a ser um público mais, vamos dizer assim, curioso”.
Além dos custos com os ingressos, para ter acesso aos estádios é cada vez mais comum ser sócio-torcedor e assumir também um custo fixo mensal, o que pode garantir prioridade na compra de ingressos.
Veja o custo dos planos de sócio-torcedor
Fonte: sites dos clubes / Levantamento realizado com os três principais times mineiros e os times que disputam a Libertadores
Histórico
Nas últimas décadas, o futebol passou por transformações que ultrapassam as linhas do campo e refletem mudanças sociais e econômicas mais amplas. O que antes era visto majoritariamente como uma manifestação popular, vivenciada de forma coletiva e intensa por diferentes classes sociais, foi sendo progressivamente moldado por lógicas mercadológicas e interesses comerciais.
Essa reconfiguração do esporte faz sentido com a análise de Francisco Brinati sobre o contexto histórico da elitização. “Isso foi um fenômeno que veio em 1994. Após a Copa do Mundo dos Estados Unidos, começa a ter os campeonatos de futebol como megaeventos, e começa a transformar isso num movimento de retorno à elitização, em que você transforma o esporte num entretenimento que vai para além da competição em si, para além do jogo.”
Conforme o pesquisador, surgem movimentos de arenização dos estádios, que transformam os campos, antes acessíveis a todas as classes, em espaços destinados apenas aos que podem pagar pelo ingresso.
SAF
No caso específico dos clubes mineiros, especialmente Cruzeiro e Atlético, há uma histórica disputa sobre quem realmente representa o “time do povo”. Nos últimos anos, ambos passaram pelo processo de transformação em SAFs, o que marcou uma mudança profunda na estrutura do futebol brasileiro.
A criação das SAFs representa a mercantilização definitiva do esporte: a paixão popular pelo futebol é transformada em ativo financeiro. Ao longo do tempo, vimos administrações que souberam equilibrar conquistas esportivas com resultados financeiros positivos. Por outro lado, também houve gestões desastrosas, marcadas por má administração, endividamento e uso político dos clubes, o que levou à crise financeira de várias equipes.
Com o modelo SAF, o clube passa a ter um dono — e esse proprietário tem total autonomia sobre a gestão. Como aponta Francisco Brinati, “é um processo que vem também nessa questão da elitização, nessa questão de transformar o futebol em um grande negócio, um negócio lucrativo, um negócio que mexe com centenas de milhões. Então você acaba misturando uma paixão com um negócio”.
De volta às elites
No Brasil, o futebol se popularizou após ser introduzido à burguesia paulistana por Charles Miller, em 1894 – mesmo com registros datando práticas antes de 1894 em diversas cidades do Brasil. Apesar de ter se consolidado como esporte preferido dos brasileiros já na década de 1920, não foi visto com bons olhos durante sua popularização pelo país. A prática chegou até mesmo a ser vetada em 1919 por um colégio no Rio de Janeiro.
O jornalista e cronista João do Rio já trazia tom crítico à origem elitista do futebol em 1916, diante da apreciação popular, quando escreveu o texto Hora de foot-ball, sobre a inauguração do primeiro estádio do Flamengo, que pontuou uma virada histórica na vida da cidade.
A crônica destaca a crescente importância do futebol na sociedade carioca, analisando como o esporte estava se tornando um fenômeno de massa. “O campo do Flamengo é enorme. Essa gente subia para a esquerda, pedreira acima, enegrecendo a rocha viva. Embaixo a mesma massa compacta. E a arquibancada – o lugar dos patrícios no circo romano, era uma colossal, formidável corbelha de belezas vivas, de meninas que pareciam querer atirar-se e gritavam o nome dos jogadores, de senhoras pálidas de entusiasmo, entre cavalheiros como tontos de perfume e também de entusiasmo.”
Paixão e profissionalização do esporte
Nos gramados, a seleção brasileira levantou a taça da Copa do Mundo em 1958. Isso marcou o momento em que o esporte se tornava, de fato, do “povão”, como é conhecido. O uso do rádio para escutar os jogos e a identificação com os jogadores, principalmente com Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, contribuíram para o momento de paixão entre a população e o esporte. Foi uma fase também de profissionalização que valorizava as características dos jogadores brasileiros, que são lembrados por jogarem com velocidade e muita personalidade.
Nas últimas décadas do século XX, o futebol já fazia parte da identidade cultural de grande parte das famílias brasileiras, tornando famoso o discurso de passar de pai para filho o amor e fidelidade para o clube que iria torcer. Após alguns anos, começaram a ser notados os primeiros efeitos da elitização. Sendo um dos mais notados pelos torcedores a redução da capacidade nos estádios.
O portal UOL publicou em 14 de maio de 2024 o resultado de uma pesquisa realizada sobre os esportes mais acompanhados no Brasil, e o futebol foi eleito como o esporte mais acompanhado, com 78%, sendo o favorito de 58% dos 503 entrevistados. O público do levantamento foi composto por homens e mulheres maiores de 18 anos que acompanham esportes pelo menos uma vez por semana.
O Mineirão – que até agosto de 2023 era a casa de Cruzeiro e Atlético – passou por esse processo. O número de torcedores que poderia frequentar a primeira versão era de 130 mil, já atualmente o estádio comporta o máximo de 62 mil pessoas, que significa uma redução de quase 48% na capacidade.
Preço dos ingressos e públicos
Em uma matéria de 2017, o GE relembra a partida entre Cruzeiro x Villa pelo Campeonato Mineiro em 1997, que teve o maior público do antigo Mineirão, com pouco mais de 132 mil torcedores presentes, sendo mais 74 mil pagantes, gerando renda bruta de R$ 664 mil, com a média do bilhete de R$8,87. O público não pagante era composto majoritariamente por cortesias, mulheres e crianças, que entravam de graça à época e representavam 57.977 torcedores.
Já em pesquisa feita pelo Lance!, o maior público do Atlético foi em um clássico mineiro com o rival, em 1968, vencendo por 1×0 diante de um público de 123 mil torcedores, sem registros de renda publicados.
Depois da reforma para a Copa do Mundo de 2014, a maior renda de bilheteria registrada até o momento foi a da partida entre Atlético e Olímpia, pela final da Conmebol Libertadores de 2013. Foram quase 60 mil torcedores presentes. Conteúdo do GE mostrou uma conversão do valor de 2013 para 2023, ano da publicação, e estimou ter sido R$25,5 milhões a arrecadação em dados atualizados.
Isso mostra que, ao longo do tempo e principalmente após a reforma dos estádios para a Copa do Mundo no Brasil, as arquibancadas diminuíram e as rendas geradas se tornaram maiores. Esse processo acabou tirando das pessoas de baixa renda o direito de torcer pelo times nos estádios.
Diversos torcedores relataram que perceberam um aumento significativo nos valores dos ingressos para ver o time do coração em campo, e alguns disseram ainda que perceberam esse aumento após a Copa de 2014, às reformas de estádios e construções de arenas.
O que dizem os times
Em nota, o América Futebol Clube disse que o time pratica um dos ingressos mais baratos entre clubes que disputam as séries A e B no Brasil. “É o mais barato entre os três clubes da capital. O sócio-torcedor do clube, através do programa Onda Verde, pode comprar entrada até por 15 reais, mostrando que todos os públicos têm acesso ao estádio. Temos campanhas recorrentes de gratuidade para crianças e mulheres. O Clube faz todo o esforço para trazer o torcedor para o estádio, tendo em vista o custo alto para abrir o Independência em dias de jogos, sem contar o valor da manutenção mensal.”
Mesmo que o ano de 2024 não tenha sido de glórias para os dois grandes clubes de Minas Gerais, pesquisa levantada pelo Lance!, mostrou que o Atlético Mineiro, que quase foi rebaixado na última rodada da competição, ficou com a média de ingresso chegando de R$ 39,40 nas 19 rodadas que disputou como mandante. Já o Cruzeiro, que também chegou ao fim do campeonato tendo perdido a vaga na pré-Libertadores, teve média de R$ 52,57 nas partidas em casa. Isso contando apenas o campeonato nacional de pontos corridos, sem considerar o estadual, a Copa do Brasil e as competições sul-americanas.
A reportagem fez contato com Atlético MG e Cruzeiro, mas não obteve retorno das assessorias até o fechamento da reportagem.
Fragmentação das transmissões
Se antigamente era mais fácil ir ao estádio comprando ingressos mais baratos e assistir aos jogos de graça pela TV aberta, devido à hegemonia da TV Globo nas transmissões esportivas, atualmente, além de ser mais caro acompanhar o futebol, os torcedores encontram dificuldade para identificar com antecedência as transmissões.
No sofá de casa, é preciso pesquisar em qual canal aberto, fechado ou streaming o jogo será exibido. Esse fenômeno, conhecido popularmente como fragmentação das transmissões, acontece quando o consumidor precisa assinar várias plataformas diferentes para assistir o clube preferido em competições, sejam elas regionais, nacionais, continentais e intercontinentais.
Antes, um grupo de mídia poderia comprar os direitos de transmissão de todo um campeonato. Agora, com a Lei nº 14.205/2021, mais conhecida como “Lei do Mandante”, o clube anfitrião tem os direitos de imagem abertos para negociar como será transmitida a partida, sem qualquer interferência do clube visitante. Isso fortalece os serviços de streaming, mas dificulta a vida do torcedor.
Mais de R$500 em assinaturas para assistir jogos
O Tempo Sports calculou que o torcedor que quiser assistir os dez jogos por rodada do campeonato brasileiro até o fim, pode acabar desembolsando R$525 por ano. Considerando que nove partidas passam no pay-per-view da Globo, o Premiere, que custa R$59,90 mensalmente ou R$29,90 (na mensalidade fechando o pacote anual).
A TV a cabo da Sky oferece o combo do próprio Premiere e a Conmebol TV por R$46,90. Já a Claro oferece o mesmo preço mensal que o produto da Globo. Mas tais assinaturas não dão acesso a todos os jogos.
O streaming da Amazon Prime, que custa de R$13,90 a R$19,90, transmite uma partida em cada competição nacional. A copa do Brasil é transmitida da mesma forma que o Brasileirão, sendo que apenas uma partida está na Amazon e o restante no Premiere.
Se quiser também assistir as competições continentais, como a Libertadores e a Sul Americana, o pacote da Disney+ junto com a ESPN sai por R$66,90 por mês, com algumas partidas exclusivas na Paramount, que tem sua mensalidade no valor de R$27,90.
Torcer custa caro
O analista de crédito Guilherme Lemos, 20 anos e torcedor do Atlético Mineiro, conta que, no ano passado (2024), teve um gasto superior a R$7 mil com o time.
“Sendo mais de R$1 mil com sócio-torcedor. Os demais (gastos) divididos entre ingressos e produtos oficiais, a maior parte em ingressos.”
Guilherme Lemos, torcedor do Atlético
O futebol é considerado parte essencial da cultura brasileira, mas cada vez menos os torcedores de baixa renda têm tido acesso ao seu time. O esporte que pode ser tido como paixão nacional nunca foi apenas um esporte, mas passou a ser tratado apenas como uma mercadoria que poucos têm direito de ter acesso.
O preço das camisas oficias não pode ser esquecido, com camisas variando entre R$700 a R$200, o que equivale a uma média de 46% a 13% do salário mínimo, os torcedores se veem muitas vezes optando por camisas falsificadas, apenas para ter a chance de vestir a camisa de seu time e mostrar, com orgulho, para que time torce.
E você? Sabe quanto gasta com o seu time em relação ao salário mínimo atual?
Descubra agora usando a calculadora interativa feita pelo Colab com o auxílio do Chat GPT.
Calcule o quanto você gasta para ser torcedor
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Conteúdo produzido por Diana Camilo, Isabella Silva, Luís Felipe, Stefani Ariel, Matheus Murici e Guilherme Siqueira, na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard. A monitora Mariana Brandão produziu conteúdos interativos e os estudantes da disciplina de Jornalismo de Dados 2025.1 auxiliaram na coleta e visualização de dados.