Com pandemia e irresponsabilidade governamental, Brasil deixa de oferecer apoio alimentar à população e preocupa especialistas
Durante os últimos meses, o combate à pandemia de covid-19 tem se mostrado bastante efetivo ao redor do mundo. Por outro lado, a fome e a pobreza, intensificadas por esta crise sanitária, ainda abalam países e preocupam especialistas, que temem pela desnutrição em massa da população afetada. No Brasil, os números são alarmantes, e, quando relacionados à crise econômica, tornam-se parte de um conflito ainda mais desafiador.
Segundo dados do relatório anual O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, divulgado em julho pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 14 milhões de pessoas que vivem na América Latina e no Caribe começaram a passar fome em 2020. Já em território brasileiro, uma pesquisa do Poder Data, divulgada em abril, mostrou que 36% dos brasileiros dizem ter passado fome ou comido menos durante a pandemia.
Crises humanitárias em território nacional
Estudo divulgado pelo Instituto Lateinamerika, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Brasília (UNB), indica que 13,6% dos brasileiros com mais de 18 anos passaram pelo menos um dia sem refeição, entre os meses de agosto e outubro de 2020. A análise também revelou que, entre as famílias que enfrentam insegurança alimentar, 66,8% são chefiadas por pessoas pretas e 73,8% são mulheres. Nesses lares, a renda familiar mensal não passa dos R$500, o que reforça a importância do auxílio emergencial no país. Nas casas que são assistidas por esse reforço, 74,1% dos moradores não tinham certeza se fariam uma refeição no dia, quando foram entrevistados para a pesquisa.
Apesar dos dados recentes, a nutricionista especializada em nutrição social, Tatielly Santos, de 26 anos, formada pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), relembra que, em território brasileiro, é necessário considerar uma série de fatores que antecedem as crises atuais quando o assunto é a desigualdade alimentar no país. Segundo ela, “a fome sempre foi um problema grave no Brasil. Não devemos fechar os olhos para o passado e crer que só agora, com a pandemia da covid-19, a população brasileira passa fome”.
Considerando o fato de que, historicamente, os maiores índices de desnutrição a nível nacional foram registrados em períodos nos quais a economia também se encontrava em crise, é possível perceber uma relação direta entre a pobreza e a fome. No entanto, para que esses dois temas possam ser entendidos de maneira completa, é preciso mais do que apenas dados numéricos, agregando conhecimento das ciências sociais e da antropologia para decifrar as causas de um problema que, há décadas, tem assombrado famílias de todo o Brasil.
As ciências humanas no combate à fome e à pobreza
Desde seu surgimento, a sociologia busca entender como, a partir de divisões sociais e econômicas estabelecidas a partir das interações humanas, é possível promover o desenvolvimento de diferentes grupos sociais. Assim como qualquer ciência, os estudos sociológicos envolvem uma gama de conceitos ao longo de suas análises, e a fome e a pobreza são dois deles. É o que explica a professora e socióloga Ariadna Moreira:, : ”A fome é um problema causado pela desigualdade social, que desencadeia a pobreza, gerando sofrimento e afligindo a sociedade brasileira. Já a sociologia estuda os fenômenos sociais, reconhecendo-os como problemas sociais ou não”.
Além dos estudos da sociedade, os chamados estudos do homem (antropologia) também apresentam uma enorme importância para o combate à pobreza, que, por sua vez, é classificada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a principal causadora da fome na atualidade. “A antropologia é uma ciência que estuda pobreza e que tenta entender porque acontecem coisas tão esdrúxulas, como, por exemplo: o Brasil é um dos maiores exportadores de alimento e, hoje, pelo menos 15% da população está na beira da fome ou na fome. Isso é uma coisa esquisita… O país que mais exporta alimento é o país que mais tem fome. Tem alguma coisa errada”, afirma o antropólogo Euclides Guimarães.
Quem tem fome tem pressa
O cenário crítico em que o país se encontra, com instabilidade política, crise sanitária e alta nos preços dos alimentos, fez com que o Brasil voltasse ao Mapa da Fome, do qual havia saído em 2014. Desenvolvido pela ONU, o índice indica, em escala mundial, países que sofrem com a fome, além de indicar como em situação crítica os que têm índice superior a 5% da população.
Nacionalmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define a existência da fome como uma situação na qual há insegurança alimentar grave no país. De acordo com o IBGE :
- Antes da pandemia, havia 57 milhões de brasileiros vivendo em insegurança alimentar no país, que é a falta de disponibilidade e acesso da população aos alimentos;
- Em abril de 2021, 116,8 milhões de pessoas passaram a viver em insegurança alimentar, sendo que 43,3 milhões não têm acesso aos alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada);
- Nessa mesma época, 19 milhões passam fome (insegurança alimentar grave).
“Vale ressaltar que o descaso governamental acentua ainda mais essa crise. Temos um governo despreparado, desestabilizado, que, definitivamente, não tem como prioridade combater a fome e a pobreza, já que ambas andam lado a lado”, analisa Tatielly Santos.
Sem aulas, sem comida
De acordo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia do Ministério da Educação (MEC) responsável por repassar os recursos para alimentação escolar, a merenda beneficia 41 milhões de estudantes, da creche até a educação de jovens e adultos. Não se sabe ao certo quantos desses alunos dependem da merenda escolar como principal refeição do dia. No entanto, há indicativos de quantos vivem em famílias mais pobres.
O Ministério da Cidadania, em parceria com a Casa Civil, estima que, hoje, cerca de 14 milhões de alunos da rede pública sejam beneficiados pelo programa Bolsa Família. Além disso, a Fundação Abrinq afirma que o Brasil tem 9 milhões de crianças e adolescentes em situação de extrema pobreza – número que coloca o país na lista dos que mais lidam com a pobreza infantil em todo o mundo.
Vale ressaltar que, no artigo nº 227, a Constituição Federal ratifica a questão da proteção à infância e à juventude: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Embora a situação do país em relação à fome esteja cada dia mais crítica, Tatielly Santos chama a atenção para políticas públicas que podem contribuir para a sua erradicação novamente. “As cooperativas populares precisam ser vistas como um importante meio de diminuição da pobreza no Brasil. Espaços públicos ociosos podem ser usados para a produção de alimentos como restaurantes populares, hortas comunitárias. Embora seja relevante para combater a fome no Brasil, o assistencialismo não substitui as políticas públicas, uma vez que a insegurança alimentar não é um problema momentâneo e, sim, estrutural”.
Na década de 1980, o Brasil vivia situações precárias de fome, e quase 40% da população estava em situação de extrema pobreza. Além do mal estar, dor no estômago e fraqueza causados, outros problemas também são consequência desse fenômeno, como é o caso da desnutrição, devido à falta de nutrientes, proteínas e calorias no organismo, o raquitismo, devido à carência de vitamina D, ou a anemia, provocada pela ausência de ferro, dentre outros vários distúrbios e doenças causadas pela falta de vitaminas A e do complexo B no organismo.
A desnutrição é uma deficiência de calorias, ou de um ou mais nutrientes essenciais. É um grave problema de saúde pública que pode afetar pessoas de qualquer idade, porém é mais preocupante quando atinge crianças, podendo apresentar retardo no crescimento, queda de imunidade e até mesmo comprometimento intelectual.
Tatielly Santos – Nutricionista com foco em nutrição social
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a desnutrição é a maior ameaça ao sistema de saúde público mundial, com 178 milhões de crianças desnutridas no mundo. O mesmo estudo revela que nove crianças morrem a cada minuto devido à falta de nutrientes essenciais em suas dietas.
Em 2003, foi criado o programa Fome Zero no governo do ex-presidente Lula para reduzir e combater a fome no país, incluindo cozinhas comunitárias, bancos de alimentação e até transferências de dinheiro, reduzindo a fome de mais de 44 milhões de famílias, e também reduzindo em 73% a desnutrição infantil. O programa foi referência mundial no combate à fome e à desnutrição.
Vários fatores são primordiais para que pessoas estejam à beira da extrema pobreza, fome e desnutrição. Segundo Euclides Guimarães, a principal é a desigualdade social. “Ela vem acompanhada de uma incapacidade de produzir alimentos, tanto no que diz respeito ao acesso aos meios de produção, quanto às habilidades necessárias para produzir. Isso está relacionado com essa imensa massa de excluídos, que vem de uma sociedade escravocrata que, quando acabou com a escravidão, trouxe imigrantes e deixou os escravos começarem nessa situação, à beira da miséria”.