O Cura (Circuito Urbano de Arte) é o primeiro festival de pintura em prédios em Belo Horizonte e o segundo no Brasil. Desde o dia 26 de julho, a região central da capital começou a ganhar novas cores. Quatro prédios tiveram a lateral pintada por artista de diferentes lugares.
O projeto foi idealizado por três mulheres: Priscila Amoni, Juliana Flores e Janaina Macruz. “Começamos a pensar isso há dois anos, voltei do Rio de Janeiro e estava encantada com as artes de lá e pensei ‘quero fazer isso, pintar uma empena (paredes laterais de um edifício, sem janelas ou portas). Conversei com a Juliana, chamamos a Janaína, que é produtora cultural, e passamos a sonhar juntas”, conta Priscila.
Na década 90, alguns prédios de Belo Horizonte já tinham ganhado cor nas fachadas e ficaram mais charmosos. O festival foi uma proposta nova para continuar transformando o horizonte da cidade. As idealizadoras escolheram um recorte a partir da Benfeitoria – uma mistura de bar, galeria de arte e casa de shows, localizado na região central de BH – onde habitantes e visitantes da cidade têm uma visão dos paredões de prédios.
A boa vista proporcionada pelo local foi importante na escolha, as dimensões dos edifícios chegam a 50 metros de altura e 37 metros de largura. “Vamos conseguir ver as empenas sendo pintadas simultaneamente por um mirante montado; é o primeiro mirante de arte urbana do Brasil, de onde é possível contemplar todas as imensas telas do mesmo lugar”, completa Priscila.
Durante 12 dias, o festival promoveu quatro mesas de debates para tratar de importantes questões do cenário de arte urbana no Brasil e na capital. Temas como a história do grafite em BH, a presença feminina na arte de rua, as diferentes vertentes e manifestações da arte urbana foram apresentados e discutidos pelos convidados. Priscila Amoni destaca a importância desses encontros. “É importante frisar que não estamos apenas colorindo a cidade. Vai muito além disso, é um resgate, um ato político, como todo ato artístico”.
As obras
O Acidum é um projeto coletivo nascido na cidade de Fortaleza, Ceará, e vem incluindo trabalhos referentes à arte urbana. Seus integrantes também participaram do Cura. As ações do Acidum seguem lideradas pelo casal Tereza Dequinta e Robézio, que compartilhou a visão xamânica na fachada do Edifício Tapajós, maior empena do projeto, no centro da capital.
O mineiro Thiago Mazza desenvolve um trabalho que reflete a sua paixão pela natureza. É possível ver referências estéticas de sua obra no surrealismo, na cultura urbana e na música. A obra de Mazza, que ilustrou a clássica fábula da disputa entre o Galo e a Raposa, foi a mais comentada do festival.
Thiago conta que, quando escolheu a fábula, pensava na associação óbvia entre Atlético e Cruzeiro, porque são seus mascotes. “Pintei dois animais, símbolos do futebol da cidade. Não quis provocar nenhum dos lados. E assim como na fábula, a raposa sempre tentando dar o bote no galinheiro, a pintura representa esse conflito eterno”, afirma Mazza.
A artista Priscila Amoni pintou o segundo mural mais alto do Brasil e o mais alto pintado por uma mulher, a empena do Hotel Rio Jordão, na Rua Rio de Janeiro, 147, com 50 metros de altura e 16 metros de largura. A pintura busca resgatar a ancestralidade negra e elevar o poder feminino. “Estou falando da medicina indígena, das florestas mortas. Cada planta que pintei representa uma coisa. A dracena é a planta de Iansã e representa força. A lavanda e o alecrim são a calma e a alegria. A marada, que brota na cabeça da mulher, é onde nasce a beleza. Nós, artistas, trazemos uma mensagem forte refletindo a cidade, não apenas enchendo suas paredes de cor”, explica Amoni.
A espanhola Mariana Capdevilla assina a pintura do terceiro mural mais alto já grafitado no Brasil. Sua pintura preenche a empena do Edifício Trianon, na rua da Bahia, 905, ao lado do Othon Palace, com escala de 44 metros de altura e 20 metros de largura. Na pintura, um choque de cores vibrantes faz alusão ao carnaval.
Novo visual para uma cidade vertical
Além da instrução acerca da arte urbana, o festival contribuiu para dar uma cara mais atraente para a cidade. Em meio a seus vários prédios, as cores das pinturas dos artistas saltam aos olhos dos transeuntes.
Conhecida por diversos nomes, como grafite, arte de rua, arte urbana, ela nasceu, em seu âmago, cercada por divergências e discussões, por vezes, elitistas. A definição de arte é algo obscuro, mas para Célio Gomide, artista plástico, professor e diretor da Escola Guignard, o grafite tem muito a agregar ao cenário urbano: “Qualquer arte é importante. Faz parte da paisagem da cidade. Eu frequento igrejas, você vê obra de Aleijadinho, andando pela cidade você vê esse tipo de arte. Se for uma arte bonita, é bem de se ver, enfeita nosso cotidiano”.
O horizonte foi certamente pintado e alterado pelos artistas. A paisagem antes cinzenta se transformou em uma tela branca para os artistas se expressarem. Como finaliza o professor: “Esse tipo de pintura é uma coisa bem tradicional na história da arte, desde as pinturas rupestres que eram feitas em paredes de grutas e você tem mosaicos bizantinos, enfeites de igreja e, aqui em BH, ainda tem vestígios de pinturas feitas na década de 80 do lado de onde está sendo feito o projeto. Ali na esquina com a rua da Bahia, um artista fez algumas pinturas. É uma iniciativa bem bacana sim. Passando pelo centro ontem fotografei uma das pinturas sem saber que vocês me convidariam”.
Seja na pré-história, seja na atualidade, a arte, em diversos tipos de tela, é algo inerente ao ser humano. É uma forma de expressão e um método de destacar um ambiente. O Festival Cura mostrou que a arte urbana tem seu lugar na sociedade e que pode, e deve, ser apoiada.
Cura divulga a arte do grafite
A arte pintada nos prédios já faz parte da paisagem da capital mineira, que completa 120 anos em dezembro. Pena que seja muitas vezes confundida com vandalismo. O festival Cura tem importância na divulgação do grafite como arte urbana e na quebra da barreira do preconceito em relação aos artistas e à arte em si.
Moradora do Edifício Rio Tapajós, a publicitária e professora de pintura Sylvia de Paula acredita que a ideia de pintar a empena dos prédios e dar vida ao que era cinza é excelente. Para ela é maravilhoso poder contemplar as pinturas de casa. “Eu respiro arte desde que eu nasci e conseguir contemplar dois murais diariamente, quando abro minha janela é perfeito, eu nunca me canso da arte”.
Para o arquiteto Renato Melo, o festival Cura é uma iniciativa importante e geralmente realizada por pessoas com potencial para inovação. “São imprescindíveis para modificar o status quo do cenário artístico na cidade e, como consequência, o Cura abre espaço para a consolidação dos artistas, sua aceitação pelo público em geral e mesmo altera a relação do poder público com a cidade.”
O Cura procura potencializar, organizar, disciplinar e fomentar as pinturas de paredes e muros como parte da paisagem da cidade. Ela é diferente da arte de galeria ou museu, pois é uma manifestação que tem que ser acessível a todos, por isso feita em um espaço público, embora sujeita a ser alterada.
Renato Melo é a favor do projeto, mas vê pontos negativos nesse tipo de intervenção artística: “As intervenções urbanas devem garantir uma cidade acessível e agradável, mas devem ser orquestradas pelo poder público. Por que há de se levar em consideração que agentes privados que atuam na paisagem urbana não necessariamente estão todos preocupados com o bem-estar urbano”.
Política de higienização em SP
Com o sucesso do festival Cura, algumas dúvidas foram levantadas como a da política de higienização proposta pelo prefeito de São Paulo, João Doria. O Cura queria mostrar os artistas por trás de tantas pinturas que se veem nas ruas, queria dar rosto à arte e mostrar que o grafite enfeita as cidades.
Para Sylvia de Paula, o festival foi importante para a divulgação do nicho da arte urbana, porque para ela “são poucas as pessoas que sabem que o Brasil é um país exportador de arte urbana, como a dança e o grafite, principalmente, e lá fora é admirado”.
Em São Paulo, Doria quer limitar os espaços de arte expostas na avenida 23 de Maio, na zona sul da capital paulista, e apagar o grafite presente na área conhecida como “Arcos do Jânio”, no centro. Apesar de reconhecer “grafiteiros e muralistas” como artistas, o prefeito afirmou que vai limitar as obras. De acordo com ele, “os grafites serão mantidos em oito espaços já definidos previamente pela Secretaria de Cultura. Os demais, que já estão envelhecidos ou infelizmente foram mutilados por pichadores, serão pintados”.
Para o arquiteto Renato, a decisão de Doria é polêmica e não esclareceu todas as dúvidas dos artistas sobre a retirada e a possível transposição dos locais destinados aos artistas. Segundo ele, a política “retirou da cidade o excesso de poluição visual e muita porcaria, mas nesse embalo eliminou também obras de arte que já faziam parte do legado artístico da cidade”.
Segundo Priscila Amoni, idealizadora do Cura, o caminho tem que ser o inverso do proposto por Doria. De acordo com o ela, o Cura quer “trazer para a cidade a discussão desses assuntos, porque nós somos a favor da arte na rua, muros coloridos, artistas valorizados, levar a arte pra periferia e trazer a arte da periferia pro centro, e é preciso o diálogo com a população, não queremos ser autoritários”.
Depois de um festival bem-sucedido e de grande repercussão como o Cura, fica a pergunta se o grafite será cada vez mais reconhecido pela população ou continuará sendo questionado como apenas pichação, ou seja, uma forma de vandalismo.
Reportagem desenvolvida por Gabriela Martinez, Karine Borges, Marcia Nonato, Marianne Fonseca e Pedro Alvim e originalmente publicada na revista Metáfora.