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O fanservice na indústria do entretenimento

Você já ouviu falar em fanservice? O termo em inglês que significa, em tradução literal, “serviço ao fã” é muito popular na indústria do entretenimento e pode estar presente na sua série ou saga de filmes preferidos. Por incrível que pareça, o termo que se popularizou na língua inglesa tem origem na cultura do universo dos animes e dos mangás. 

Basicamente, fanservice é entregar no produto audiovisual o que os fãs querem ver. Acontece quando os envolvidos na obra, seja o produtor, diretor ou roteirista, escolhe materializar em cena algo que seja chamativo e agrade aos fãs, e não necessariamente algo que faça sentido com a história.

Mas como diferenciar o que é fanservice do que realmente agrega a narrativa?

Bom, o sucesso de uma produção cultural, seja ela em áudio, vídeo ou mesmo palavras, é medido pela quantidade de pessoas que o consomem, certo? No entanto, no momento em que um artista resolve expor sua história, seja como for, ele parte de suas ideias pessoais. 

Isso muda quando o produto começa a se destacar e ganhar atenção do público. O que antes era uma expressão pessoal do autor, agora se divide em milhares de novas visões e, consequentemente, opiniões a respeito da narrativa. Essa externalização dos desejos dos fãs tem o poder de alterar o percurso de toda uma história já que quem a absorve são eles próprios.

De acordo com Lorenna Montenegro, professora de filmmaker da Academia Internacional de Cinema, além de roteirista e crítica de cinema, o fanservice se tornou algo além de uma prática para fazer com que os fãs se engajem mais ao produto. 

“Eu acho que virou uma questão de sobrevivência no mercado. Falando desses produtos que tem um apelo muito grande junto ao público, principalmente o geek, virou quase que uma exigência, de uma certa forma. Aí eu falo do MCU (Marvel Cinematic Universe) e até do mundo mágico de Harry Potter. Além de qualquer grande franquia dessas que derivam de games ou da literatura, virou uma exigência cumprir alguma dessas solicitações, responder aos anseios dos fãs.”

Relacionamento saudável?

O problema com o uso de fanservice começa quando uma produção, que estava seguindo uma determinada narrativa linear, se desprende daquela linha e passa a assumir os desejos dos fãs como prioridade. Essa linha que divide o que os fãs querem de verdade com o que realmente deveria acontecer para fazer jus à narrativa já existente é muito fácil de ser esquecida. 

Como atualmente temos a oportunidade de expressar nossas opiniões publicamente em grande escala pela internet, os desenvolvedores por trás das produções mantêm contato direto com toda a repercussão causada após a exibição de um filme, de uma série ou um lançamento de uma saga de livros. 

Como mencionado anteriormente, para que uma produção realmente faça sucesso, os fãs precisam consumí-la ostensivamente, e, como vivemos na era da tecnologia, comentar sobre ela nas redes sociais é também um aspecto fundamental. No momento em que as opiniões são expostas e a comoção é criada, seja quando refutam um acontecimento ou relatam sobre um certo arco que deveria acontecer com os personagens, seu alcance para outros públicos é potencializado.

A popularização dessas teorias feitas pelos fãs, assim como o aumento de audiência, influencia a perspectiva da obra original e as opiniões dos fãs são, recorrentemente, incorporadas à obra. O problema, ainda de acordo com Lorenna, é que o fanservice, quando executado de forma “preguiçosa”, acaba arruinando a experiência do espectador e do fã, mesmo que tenha sido aquilo que eles desejavam ver.

“O fanservice é responder a essa necessidade que os fãs têm. Falando, por exemplo, em Star Wars, que tem um fandom muito complicado, às vezes até tóxico, se os filmes não suprirem as necessidades, não presta. Aí, se suprir as necessidades, acaba que vira um produto audiovisual muito medíocre, que foi o caso de ‘A Ascensão Skywalker’ (2019).”

Ao opinar sobre o assunto, ela ainda completa: “Eu gosto quando suprem, de certa forma, os nossos anseios, mas acho que tem que ser muito bem feito, muito bem pensado, não pode servir única e exclusivamente para satisfazer essa necessidade e para ter mais público, tem que alinhar o mercado com o lado criativo, senão fica muito complicado.”

O lado bom

Por outro lado, o fanservice não é de um todo ruim. Em muitos casos, essa abordagem que prioriza os desejos dos fãs pode colaborar com o engajamento de uma produção até o ponto de trazer de volta sentimentos que foram perdidos, no caso, por exemplo, de reboots e remakes.

O reboot é uma versão completamente nova de um filme ou uma série que já foi lançado, sem considerar os elementos apresentados anteriormente. É como um recomeço, onde a nova história e seus personagens não estão mais relacionados com a obra anterior. Por sua vez, o remake repete o que já foi feito, às vezes com novos atores, mas sempre a mesma história.

Clément M. on Unsplash

Exemplos muito famosos que ilustram bem esses termos são as três versões já lançadas de “Homem-Aranha”, onde cada uma é considerada um reboot da anterior. Tivemos a primeira trilogia estrelada por Tobey Maguire de 2002 a 2007; em seguida, foi a vez de Andrew Garfield estrelar outros dois filmes, o primeiro, em 2012, e o segundo, em 2014, com outra perspectiva sobre o herói; e, por fim, Tom Holland viveu o Homem-Aranha em filmes solos (2017 e 2019), assim como em outras produções da MCU, como “Vingadores: Ultimato” (2019). 

Na teoria, trazer à vida três versões diferentes de um mesmo herói não seria necessário, mas o amor e a receptividade dos fãs para cada um deles, sem mencionar o lucro que gerou aos produtores, foi motivo de sobra para oferecer esse fanservice. Apenas no filme de 2019, estrelado por Tom Holland, “Homem Aranha: Longe de Casa”, a bilheteria somou 1,132 bilhão de dólares, mundialmente. 

Em se tratando de remakes, exemplos não faltam. A Disney é talvez a produtora que mais aderiu a esse método, já que sempre teve uma lista infindável de produções animadas que poderiam ser transformadas em remakes de live action. O laço afetivo dos fãs que cresceram assistindo aos filmes originais automaticamente renasceu junto à perspectiva de assistir a qualquer que fosse a nova produção em live action

Considerado o maior live action lançado pela Disney, “O Rei Leão” arrecadou 1,334 bilhão de dólares em bilheteria, seguido por “A Bela e a Fera”, que por sua vez somou 1,263 bilhão de dólares. Isso prova que o mercado para o fanservice “do bem” existe e, se desempenhado de uma forma que equilibre os desejos dos fãs com uma história já conhecida, não faz mal.

O fanservice na HBO

De acordo com Victor Souza, estudante de Direito e aficionado por cinema, o fanservice pode agregar à história, contanto que não faça uso de artifícios exagerados. 

“Eu gosto de fanservice, gosto quando é usado e acho que às vezes é bom quando querem agradar quem está assistindo. Mas não acho bom quando os fãs têm mais voz na criação do que os próprios criadores. Acaba atrapalhando muito o decorrer do que vai ser o produto final. O fanservice, usado com cautela e com mais controle pode ser muito bom, sim.

No entanto, mesmo sendo usado com as melhores intenções de quem está por trás do processo criativo, o fanservice não é sinônimo de sucesso. Tomemos como exemplo “Game of Thrones” (2011 – 2019) que, de acordo com o Guinness World Record, teve sua oitava e última temporada ultrapassando a média global de audiência de todas as séries de TV que foram lançadas entre 2015 e 2019. 

A produção, baseada na série de livros homônimos de George R.R Martin, conquistou uma legião de fãs ao redor do mundo. O episódio final da série, intitulado “The Iron Throne”, bateu recorde de audiência, tornando-se o mais assistido da história da HBO, com 19,3 milhões de pessoas nos Estados Unidos em todas as plataformas da emissora (canal de televisão e plataformas de streaming). Isso trouxe uma média de 44,2 milhões de espectadores por episódio em audiência bruta na última temporada, de acordo com um comunicado da HBO.

Mesmo com essa repercussão, os fãs não se mostraram satisfeitos com a resolução da série. Sendo baseada, até sua quinta temporada nos livros, os showrunners David Benioff e D.B. Weiss, conhecidos pelo fandom como D&D, se desprenderam da história até então contada  nos livros, e trouxeram uma visão diferente para as telas de televisão.

Divulgação: Rotten Tomatos

De acordo com estatísticas fornecidas pelo portal de críticas americano Rotten Tomatos, as duas últimas temporadas da série marcaram também os piores índices de aprovação, com a oitava e última temporada recebendo uma nota de 54%, quando todas as outras, mesmo ranqueadas com índices mais baixos, não saíram da casa dos 90%.

De acordo com Mariana Canhisares, crítica de cinema no portal Omelete, o tipo de fanservice utilizado na série pode ter sido o responsável por essa recaída já que, sem o apoio dos livros para guiar a história, os showrunners recorreram ao que acreditavam que iria agradar aos fãs, não o que contribuia com a linearidade do que tinha sido apresentado até então.

“Existem fanservices, e fanservices, né? Ainda que em última instância seja um esforço para agradar o espectador, sobretudo aquele que acompanha a franquia há anos, se ele não estiver bem inserido no filme, série ou o que quer que seja, o efeito pode ser o oposto. Porque, no fundo, as pessoas querem ver boas histórias, então o fanservice vazio não se sustenta no longo prazo – gera buzz nas redes sociais, claro, mas isso pode significar muitas vezes críticas negativas, como foi o caso da última temporada de “Game of Thrones”. Agora, quando ele não é jogado, ele pode elevar a sensação de recompensa do fã com aquela obra.”

Ciclo sem fim 

Dessa forma, fica claro o modo como o fanservice se torna visível no mundo do entretenimento. Com isso, um ciclo se forma: no momento em que a audiência cria um vínculo afetivo com a obra e passa a comentá-la e divulgá-la, muitas vezes exige que, em troca, seus desejos sejam atendidos. A partir disso, quando novas pessoas são convencidas a assistir à obra, podem encontrar uma certa inconsistência, já que não participaram da bolha de fãs que consumiam a história desde o início, e já estavam acostumados com o processo criativo dos produtores. 

Isso também acontece no processo reverso, quando fãs antigos, como no caso de “Game of Thrones”, foram surpreendidos por uma mudança radical na série, em função do fanservice utilizado nas temporadas que não tinham os livros como base. 

Enfim, em um piscar de olhos, a autonomia e o controle criativo dos criadores e showrunners, que deveriam tomar as rédeas de toda a produção, acaba diluindo e a essência da obra original se transforma em uma adaptação mal contada dela mesma.

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