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Falta de higiene e desigualdade expõem brasileiros ao risco de amputação do pênis

A vergonha de ir ao médico e a desinformação sobre higiene e vacinas mantêm altos os índices de câncer de pênis no Brasil // Foto: Freepik

Mais de 6.456 brasileiros tiveram o pênis amputado no Brasil entre 2014 e 2023, segundo levantamentos da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) com base em dados do DataSUS, divulgados em reportagens e pesquisas entre 2022 e 2025 (Global Pattern and Trends in Penile Cancer Incidence: Population-Based Study – PMC, Incidence of penile cancer worldwide: systematic review and meta-analysis – PMC, Por que mil brasileiros perdem o pênis todos os anos no Brasil? – Portal Drauzio Varella, Amputação de pênis: mais de 5,8 mil foram ‘mutilados’ pelo câncer no Brasil em 10 anos; saiba como se prevenir e Mais de 6,4 mil amputações de pênis foram registradas no Brasil em 10 anos). A média anual de 645 amputações revela um problema que vai muito além das estatísticas médicas e expõe as desigualdades do país. Por trás desses números, há histórias marcadas por falta de informação, ausência de atendimento e uma realidade incômoda do privilégio regional.

O câncer de pênis, principal causa das amputações, é uma doença rara em escala mundial, mas que encontra terreno fértil no Brasil devido às desigualdades sociais e do acesso precário a serviços básicos de saúde. Em estados do Norte e Nordeste, onde o acesso à água e à atenção básica é mais limitado, a incidência e a mortalidade são mais altas. A doença costuma começar de forma silenciosa, com pequenas inflamações causadas pela má higienização, que se intensificam quando há fimose e a limpeza não é feita adequadamente, permitindo que essas infecções se tornem crônicas e evoluam, ao longo do tempo, para tumores.

Para o urologista André Lopes Salazar, da SBU, a combinação entre baixa renda, pouca informação e dificuldade de acesso ao médico cria o cenário ideal para que os casos avancem. Ele explica que o carcinoma espinocelular, tipo mais comum de tumor no pênis, está diretamente associado à inflamação crônica causada por falta de higiene. 

Quando se amplia o recorte e se observa os dados nacionais e internacionais, fica claro que o Brasil não está no mesmo patamar das grandes populações onde o câncer peniano é raro. O país aparece entre aqueles com taxas relativamente altas e, internamente, concentra a maior parte do problema nas regiões Norte e Nordeste. Revisões epidemiológicas e estudos regionais colocam o Brasil entre os países com maior carga da doença na América Latina. Além disso, estados como o Maranhão e hospitais de referência em Pernambuco registram taxas e séries de casos que ilustram essa desigualdade geográfica. 

Em notas e comunicados públicos da SBU divulgados em portais especializados e veículos jornalísticos, houve referência a “média superior a 600 amputações por ano” nos últimos dez anos e a mais de 21 mil internações por câncer de pênis, números consistentes, mas com pequenas variações metodológicas entre levantamentos.

Estudos regionais

No Maranhão, trabalhos de centros de referência mostram incidência muito acima da média nacional e tumores frequentemente diagnosticados em estágios avançados. Esse cenário está associado à baixa escolaridade, à alta prevalência de fatores de risco e à dificuldade de acompanhamento médico. Em Pernambuco, o Hospital do Câncer da região registrou dezenas de casos anuais em séries recentes, o que reforça a concentração regional do problema e a sobrecarga enfrentada pelos serviços locais. Esses levantamentos ajudam a dimensionar o impacto da desigualdade, como a falta de acesso a exames, informação e tratamento precoce é o que define o desfecho da maioria dos casos.

A infraestrutura aparece como um nó quase que fundamental durante a conversa com os especialistas. João Brunhara, urologista e membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida, destacou que, embora campanhas informativas sejam essenciais, elas não substituem a garantia material do direito ao saneamento. Em cidades e bairros onde não há banheiro em casa, a orientação sobre lavar a glande diariamente esbarra na impossibilidade concreta, já que higiene só existe onde há água, sabão e um espaço para fazer a higiene pessoal.

Para lidar com isso, as fontes técnicas (SBU, INCA e Ministério da Saúde) reforçam a importância de políticas conjuntas que combinem educação, saneamento e acesso ao atendimento primário. Em termos objetivos, o que falta não é apenas informação, mas condições básicas para colocá-la em prática.

Tabu como causa

Mesmo onde existe estrutura sanitária mínima, o tabu continua sendo outra barreira ainda mais difícil de contornar, que impede que a prevenção aconteça. O urologista João Brunhara explica que a cultura da masculinidade cria um tipo de silêncio em torno do corpo masculino. “Entre homens, é muito comum associar o cuidado com o corpo à fraqueza. Isso faz com que queixas simples não sejam levadas ao médico, e o que poderia ser resolvido com orientação acaba virando um caso grave”, afirma.

Segundo o Dr. André Salazar, esse comportamento tem um impacto direto no desfecho dos diagnósticos e é a diferença decisiva entre identificar um tumor no início e descobrir o câncer em estágio avançado. “Quando o diagnóstico é precoce, o tratamento costuma preservar o órgão e as funções sexual e urinária. Quando o paciente chega tarde, muitas vezes a amputação parcial ou total é a única saída’’, explica. Ele lembra que a maioria das amputações poderia ser evitada se houvesse uma cultura de procurar o médico nos primeiros sinais de anormalidade como coceiras, pequenas feridas e/ou inflamações recorrentes.

Médica no SUS, Ana Laura Castro Teixeira // Foto: Arquivo pessoal

A médica Ana Laura Machado, que atende pelo SUS e atua na atenção primária, descreve o problema antes de ele virar estatística. “A gente vê muitos casos de infecções repetidas, como balanite e postite, principalmente em homens com fimose ou dificuldade de higiene. Nos pacientes acamados, isso é ainda mais comum, porque a limpeza depende de outra pessoa”, relata. Ela reforça que há medidas de prevenção disponíveis no sistema público, como o tratamento da fimose, vacinação contra o HPV e orientações sobre higiene, mas que o tabu ainda é uma barreira em que o paciente só procura ajuda quando o problema já é grave. “Falta informação, mas também falta espaço para falar sobre o corpo sem vergonha”.

Além das questões culturais e comportamentais, o HPV é um fator biológico que reforça o ciclo da desigualdade. Estudos e levantamentos clínicos apontam que o vírus está presente em cerca de 30% a 50% dos casos de câncer de pênis. O dado é ainda mais relevante em regiões com menor adesão à vacinação. O imunizante, disponível gratuitamente no SUS para meninos e meninas entre 9 e 14 anos, é uma das formas mais eficazes de prevenir não só o câncer de colo de útero, mas também o de pênis, ânus e orofaringe. A médica ainda reforça que a vacina é uma ferramenta poderosa, mas que a adesão dos meninos sempre foi menor comparada com a de meninas, além de haver uma questão cultural que os impede de acessar a prevenção, por falta de informação.

Outro fator que se repete nos casos atendidos pela rede pública é a fimose, condição que impede a exposição completa da glande, dificulta a limpeza e favorece o acúmulo de secreções e inflamações. Quando o quadro é severo, a cirurgia de postectomia, que remove o excesso de pele, é indicada pela sua simplicidade e gratuidade através do SUS. O fácil acesso ao procedimento também é uma das razões, já que em muitos municípios é realizado mutirões que buscam atender populações com acesso limitado a serviços regulares. Essas ações, quando somadas à vacinação e às campanhas educativas, reduzem significativamente os riscos da doença ou de amputação do pênis. 

Como tantos outros cânceres, o peniano é evitável, e é justamente isso que faz das amputações um alerta sobre o atraso no cuidado com a saúde masculina. Para Salazar, cada caso representa uma falha de prevenção, diagnóstico e acompanhamento. “O problema é que o homem brasileiro ainda chega tarde. Ele espera a dor, o incômodo ou o medo da impotência para ir ao médico. E aí o que era tratável passa a ser irreversível”, afirma. 

Agenda para a ação

Vacinação contra o HPV // Foto: Freepik

As medidas necessárias para reduzir os números já são conhecidas, e foram reforçadas por todas as fontes consultadas. Fortalecer a atenção primária é o ponto de partida para garantir que as Unidades Básicas de Saúde estejam preparadas para identificar sintomas iniciais e orientar os pacientes é uma forma direta de impedir que a doença avance. Campanhas de conscientização precisam falar com os homens sem moralismo, normalizando o cuidado e quebrando o tabu de procurar atendimento. 

A vacinação contra o HPV é outra frente essencial, assim como o incentivo à postectomia quando há indicação médica. Mutirões de cirurgia, combinados a campanhas educativas e ações de prevenção, mostraram bons resultados em municípios nordestinos nos últimos anos, segundo dados divulgados pela SBU e por reportagens do G1. No entanto, nenhuma dessas estratégias é suficiente sem investimento em infraestrutura básica. João Brunhara ainda lembra: “é impossível falar de higiene sem garantir água e saneamento, a desigualdade sanitária é o início de toda a cadeia”.

Essas medidas também aparecem nas recomendações do Ministério da Saúde, que cita a integração entre saneamento, educação e atenção primária como eixo central da prevenção. Em nota oficial enviada por e-mail, o Ministério da Saúde reforçou que o câncer de pênis, embora raro, traz consequências físicas, psicológicas e sociais graves quando identificado tardiamente. O órgão destacou a importância da higiene íntima diária, da vacinação contra o HPV e do tratamento da fimose quando indicado, medidas simples, mas que fundamentais para prevenir a doença.

Evitar que o câncer de pênis continue a mutilar centenas de homens todos os anos não depende apenas de campanhas de conscientização, mas de políticas públicas que olhem para o básico. Garantir água, saneamento e informação desde o primário é o mínimo, o resto é consequência. No fim das contas, cada amputação não é um caso isolado, é um retrato de um país que ainda falha em proteger o corpo masculino do abandono e da desigualdade.

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