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Etiene Martins: ativista cria a livraria Bantu

Etiene Martins é ativista e idealizadora da livraria Bantu (Foto: Roberto Barcelos)

Etiene Martins é ativista e idealizadora da livraria Bantu (Foto: Roberto Barcelos)

O mar era formado pelo piso frio e soturno de ardósia, dentro de corredores tão escuros quanto o cinza de sua cor. Largo, amarelo e com a iluminação escassa, o Edifício Central, era um oceano de preposições e serviços que aparentavam estar absortos, principalmente pelo pouco número de transeuntes em seu interior. Seus principais fregueses ficavam em torno do prédio, na Avenida Andradas, frequentando os bares do baixo centro de Belo Horizonte.

A banalidade aparente do lugar é como uma miragem nos olhos dos moradores da capital mineira. Parar ali e se aventurar por seus corredores abre espaço para a imaginação, talvez uma Odisséia por ilhas esquecidas e tão pouco expressivas no mundo contemporâneo. Lojas de discos, máquina de costuras e eletrônicos chineses, além de chaveiros, empréstimo bancário e escritórios. Porém, entre essas ilhas existe uma utopia, pelo menos podemos caracterizar o espaço dessa maneira.

A ilha dos Bantus reúne todos os pensadores negros que sobreviveram ao massacre que os europeus e os estadunidenses exerceram durante as missões imperialistas. Justificado como o “fardo do homem branco”, eles destruíram a cultura de diversos povos de matriz africana e impediram outros autores, poetas, pesquisadores e ativistas negros de terem algum espaço na academia ou livrarias convencionais. Para salvar o passado e o futuro do que restou dessa calamidade, Etiene Martins, 33 anos, jornalista, publicitária, Youtuber, professora e ativista negra, tornou-se a líder e sacerdote de Bantu; onde a memória é protegida.

Livraria Bantu: temática racial é carro chefe do espaço

O primeiro encontro foi uma pequena surpresa, pois nos deparamos com uma porta larga de alumínio bloqueando a entrada da livraria. Não sabíamos o que esperar do outro lado, mas tínhamos certeza de que aquele era o lugar certo por causa de um banner marrom escrito “Bantu”. Não demorou para ela chegar, com o cabelo preso em um afro puff — como uma coroa — e os passos tranquilo de quem dominava o edifício. Simpática, cumprimentou o grupo e abriu a porta de alumínio com um puxão. O movimento hábil das mãos foi o começo de uma nova passagem, como uma sacerdotisa que dissipa a névoa que obstrui as costas de um paraíso proibido.

Múltiplas cores — do que parecia ser a paleta de cores perfeita — se fizeram presentes no interior da loja, explodindo em um paraíso tropical, como as exóticas ilhas caribenhas ocupadas pelos africanos durante a Diáspora. Livros dos mais diversos tipos estavam alinhados nas prateleiras que cobriam duas paredes inteiras. Ficções, pesquisas, livros infantis e contemporâneos. Todas as nacionalidades reunidas em um único território, a utopia que protege a literatura de origem afro e dá para todos os autores seu devido valor.

Os bonecos de pano na prateleira sinalizam o espaço destinado às crianças. Mais do que isso, sinalizam que ali, crianças negras podem se reconhecer no pano marrom da pele dos brinquedos. Nada está ali por acaso, todos os objetos são mensagens subliminares da luta negra e da luta particular daquela mulher.

O recorte do jornal pregado e emoldurado na parede chama a atenção e nos leva à dura realidade. O título “luta diária contra o racismo” evidencia que apesar do falar doce, ela não está ali de brincadeira. Aquelas palavras emolduradas contam apenas uma das diversas situações de racismo enfrentadas por Etiene.

Aquele espaço tão pequeno não comporta seu ser, sua vontade de levar o que ali está às pessoas. Ela senta-se em uma cadeira de palha envernizada larga para o seu corpo, com uma almofada grande e macia com a estampa de flores, não diferente do tom da blusa de renda que vestia — contrastando com a pele negra. O leque de tons entre o vermelho e o azul também estampava a capa de um dos livros da mesinha de centro do lugar. Ao perguntarmos sobre o seu interesse em literatura negra, ela pegou o livro escrito pela estadunidense Alice Walker e nos apresentou. “Muito antes da livraria, A Cor Púrpura da Alice Walker sempre foi meu livro favorito. Minha primeira porta para a literatura negra foi através dessa autora, e o livro é maravilhoso, todo escrito em formato de cartas, todo trabalhado na questão racial e do feminino e o amor que é o principal de tudo, por tudo”, ela diz.

Etiene Martins sempre buscou autores negros como referência (Fotos: divulgação/Facebook)

Etiene demonstra timidez em suas respostas enquanto caminha; por vezes, em caminhos pouco explorados. Ela diz não saber como comentar os dados levantados pela Publishnews (site especializado em fornecer informações sobre a indústria literária, responsável por ranquear as obras mais vendidas) sobre os livros mais vendidos no Brasil, desde 2010, que são alarmantes: até o primeiro semestre de 2017, apenas um livro com autor negro foi incluído na lista dos mais vendidos, “Sonho Grande”, de Cristiane Correa, que traz a história dos empresários (brancos) Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira.

Além disso, apenas dois negros ganharam o Nobel de Literatura em mais de 130 edições do prêmio. “Infelizmente, tudo o que diz respeito ao acesso à cultura é negado ao povo negro. Por exemplo, Wole Soyinka foi o primeiro africano a ganhar o Nobel de Literatura, da mesma forma que Toni Morrison também teve um grande alcance por ser norte-americana. Mas, então, pensamos: como Machado de Assis, Cruz e Sousa, Castro Alves e muitos outros não ganharam esse prêmio? ”, Etiene contesta “É um prêmio elitista e excludente que, infelizmente, querem colocar que os intelectuais são apenas os brancos. A literatura tem essa questão do elitismo”. Concluindo sua fala apaixonada, mas resignada, a jornalista sarcasticamente sorri: “Mas quem perde é o prêmio, na minha opinião”.

A opinião mostra vontade de ver o povo negro ter acesso à educação de qualidade e ao espaço acadêmico. A também professora fala sobre seus dias lecionando em um presídio. “Eu senti muita necessidade de trabalhar com a questão racial. Infelizmente, quando você chega em um presídio, a maior parte da população carcerária é negra. Segundo o IBGE, são 75%, e segundo o meu olhar lá de dentro da penitenciária Nelson Hungria, em Nova Contagem, são 99,9%”. Para ela, a necessidade de levar a cultura negra e tudo o que é produzido pelo povo negro a essas pessoas é enorme. “Não tem como você descobrir a literatura negra e não passá-la pra frente”.

É por causa dessa paixão pela produção literária dos negros que Etiene criou a Bantu, que surgiu como uma livraria itinerante nas feiras da capital mineira e depois se modificou em um espaço físico por causa da demanda do público. “Eu já gostava da literatura negra, procurava material desde a época da faculdade para poder pesquisar, aí surgiu a ideia de fazer uma livraria com essa temática, já que a livrarias convencionais não trabalham com ela”.

A presença de obras infantis é marcante no espaço e para Etiene. “As nossas crianças não têm acesso a uma literatura que pareça com elas, uma princesa com o cabelo crespo, uma princesa com a melanina acentuada. Nós vivemos em um país tão diverso, em que a maior parte da população é negra. Porque literatura não pode alcançar esse público e também? Não só o público negro, mas também outros. Que fale sobre a verdadeira história do nosso verdadeiro povo, porque a maior parte de nós não é loira, não tem os olhos azuis… Muito pelo contrário, nosso povo é negro”, acentua a livreira, como quem conhece o que diz pela própria vivência e anseia por mudanças.

Logo, refletimos sobre como esse desejo abriu portas para que ela entrasse em um espaço como a universidade. Provavelmente, a questão negra era de difícil acesso nas salas de aula, pelo menos possuímos essa visão quando encaramos os efeitos da diáspora e do colonialismo. Ela não subverte a pergunta feita, mas deixa claro que o negro possui a capacidade de resistir a esses espaços de domínio hegemônico. “Quatro anos em uma universidade, imerso em um lugar branco e elitista, que vai tirar a negritude do nosso povo. Quando o negro entra para esse espaço, ele garante parte do lugar dele na sociedade. Esse espaço deixa de ser menos branco e passa a ser um pouco mais brasileiro.”

A conversa no espaço apertado, mas rico de cultura e resistência, nos levantou uma questão que deveria estar presente desde o começo da conversa. O que significa Bantu? Indagamos, como um segredo que revela em suas letras um mapa para a utopia tropical. Com um pequeno sorriso de quem sabe demais, ela cruzou as pernas na cadeira e marcou as frases com a gestualidade das mãos durante a explicação. “O significado da palavra é extenso, porque Bantu é um povo etnolinguístico da África. Eles vieram da Angola, Moçambique e outros países africanos até Minas Gerais. É difícil enxergá-los, mas estão aqui em Minas Gerais. Nossa cultura é negra. Bantu está em nossa língua, nosso povo e tento homenageá-los com esse espaço e nome. ”

Sobre os livros, ela conta não ter muito tempo para as novidades da livraria. Estava se preparando para o mestrado e o seu novo amor era Foucault, um dos autores que a prova abordará. Com um bom humor contínuo durante a conversa, ela despediu de cada um com um beijo no rosto e voltou a fechar a porta de alumínio da livraria. Seu próximo compromisso é no cursinho pré-vestibular onde leciona Literatura e Língua Portuguesa. Mesmo com a porta fechada era possível ouvir o rugir dos tambores tribais, como uma marca na memória de quem conheceu a cultura banta.

Perfil escrito por Ana Luísa Santos, Gabriella Carvalho e Roberto Barcelos e originalmente publicado na revista Metáfora.
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