Em agosto de 2021, Tamara Klink iniciou uma aventura incomum, especialmente para jovens de 24 anos. Em dois meses e meio, ela atravessou sozinha o Oceano Atlântico, saindo de Lorient, na França, até desembarcar no Recife. A bordo da Sardinha, um veleiro de 26 pés (cerca de 8 metros) reformado por ela mesma, Tamara se tornou a brasileira mais jovem a cruzar o Atlântico em solitário. Ela, no entanto, parece não se importar com o título.
Enquanto viajava, seus seguidores tinham acesso a um link que mostrava em tempo real a sua localização no oceano. Além disso, atualizações e textos escritos por ela eram publicados no Instagram após serem enviados via SMS para amigos e familiares.
O trecho, contudo, não foi o primeiro que ela cruzou sozinha: em 2020, quando ainda estudava na França, Tamara Klink foi à Noruega para conhecer pessoalmente um espectador do seu canal do YouTube que acabou se tornando um amigo. Foi ele, Henrique Gaspar, quem a convenceu de comprar seu primeiro barco. Lá ela passou um mês dedicando-se a reformar o veleiro para, em seguida, retornar à França a bordo dele.
Aventuras se transformam em livros
Essa primeira viagem se desdobrou em um livro, “Mil Milhas”, que foi publicado pela Editora Peirópolis juntamente com “Um mundo em poucas milhas”, um diário escrito por ela entre 2019 e 2021. Enquanto Tamara realizava a travessia do Atlântico, seus dois livros foram publicados em um box, chamado “Crescer e Partir”.
“Estou num lugar que não dura um segundo vejo nascerem e morrerem montanhas escalo ladeiras vestidas de branco o céu experimenta fantasias dum carnaval de infinitos dias” Trecho do poema “Fim” do livro “Um mundo em poucas linhas
Paixão pelo oceano é herança familiar
Os posfácios dos livros foram assinados por seus pais, Amyr e Marina Klink. Ambos ficaram conhecidos por suas expedições: em 1984 Amyr fez o mesmo trajeto que Tamara, só que em um barco a remo. A experiência também virou livro, chamado “Cem dias entre céu e mar”. A família também ficou conhecida após as expedições que fizeram para a Antártica, quando as filhas ainda eram crianças.
Amyr não quis ensinar a filha a velejar, nem ajudá-la a comprar o primeiro barco, para que conquistasse conhecimento e fundos sozinha. No texto do posfácio, ele diz “É duro dizer não a quem se ama. Mas Tamara reagiu à minha negativa com um sorriso intenso – que de mim não herdou e, de um jeito delicado e decidido, compreendeu que cada um escreve sua história, que não é algo que se herda ou se empresta”.
Os dois certamente garantiram às três filhas uma infância fora do comum. Em “Mil Milhas” Tamara conta da experiência de viajar até a Antártica durante as férias escolares e atribui, em parte, aos pais, o desejo de se aventurar: “Conheci o mar antes de saber o que ele era. Meu pai nos colocava para dormir contando histórias de ondas gigantes, frio polar, tempestades e bichos que nunca tinham visto gente.”
Abaixo, você confere a entrevista de Tamara ao Colab:
O seu pai, velejador experiente, e seu amigo Henrique, que te ajudou com a compra, já falaram em entrevistas sobre alguns aspectos mais “precários” do barco. Durante a travessia, e no seu livro, você costumava falar “nós”, se referindo a si mesma e à Sardinha, ao invés de “eu”, o que demonstrava certo afeto pelo barco. Como é a relação que você desenvolveu com ela? Pretende seguir navegando com ela ou tem planos de comprar novos barcos?
A Sardinha me levou a lugares que eu jamais alcançaria apenas com o meu corpo. Ela também foi tolerante aos meus grandes e pequenos erros de principiante. Espero que ela siga navegando, comigo ou com outras navegadoras.
No “Mil Milhas”, sobre a escolha de contar para a sua avó sobre a travessia Noruega-França antes de qualquer outra pessoa da sua família, você escreveu: “Há, no entanto, uma única pessoa da minha família em que confio 100%, com quem eu sei que posso contar a qualquer momento e que vai saber guardar segredo.” Você não teve receio de que as apreensões dela te causassem mais medo de realizar a viagem, assim como foi em relação à sua mãe? Você pode falar um pouco sobre a sua relação com a sua avó?
Com a idade que eu atravessei o Atlântico, a minha avó estava vivendo uma travessia muito mais dura, muito mais longa, muito mais solitária que era aquela de ser mãe. Eu sabia que nenhum desafio que eu encontraria seria tão grande quanto aqueles que ela viveu. Sou muito grata pelo apoio que minha avó me deu, acolhendo minha ideia, me encorajando a partir e guardando o meu segredo.
Também no “Mil Milhas” você diz: “No dia em que fizer viagens mais longas, terei de saber conviver com a solidão.” Quando você escreveu isso, já tinha em mente a travessia do Atlântico?
Sim. Mas não imaginava que seria tão rápido, nem com o mesmo barco.
Agora, meses depois de terminá-la, aprendeu a conviver com a solidão?
Aprendi a aceitá-la. Mas sinto saudades, carência e desejo de companhia como qualquer pessoa.
Quais eram os desafios de se ver só no meio do oceano? E quais as surpresas?
O maior desafio é tomar decisões a partir de informações limitadas, e com a consciência de que eu não estou na minha melhor forma física, mental nem emocional.
Você escreveu “Quero me lembrar do que fiz para criar coragem e fazer mais”. Depois disso, veio o desafio que te fez ser a mais jovem brasileira a atravessar o Atlântico em solitário. Já tem novas aventuras em mente?
A grande aventura é manter as amizades estando constantemente em deslocamento.
Imagino que lançar dois livros de uma só vez, assim como viver esta grande aventura de atravessar o oceano, tenha te exigido certa coragem. Comparando essas sensações, o que você encontra de diferenças e semelhanças?
Não acho que exija coragem fazer a viagem. Exige iniciativa, sorte de encontrar as pessoas certas e as boas condições em um momento favorável, não se deixar levar pelas crenças limitantes e saber negociar com os riscos. No mar, eu estou em solitário no “fim” do processo. Até o dia da partida eu conto com muitas pessoas e empresas que me ajudam a preparar o projeto, a viagem e o barco. No livro, eu só estou em solitário no comecinho. Eu escrevo sozinha, mas o texto não vira livro sem a editora, designer, revisora, sem os leitores. São eles que concluem a travessia. Até por isso, sinto que quando o texto é publicado ele não me pertence mais.
A meu ver, uma das coisas que torna a história da sua travessia tão especial é que ela foi contada enquanto acontecia, através das redes sociais e dos diários que você escrevia. O principal assunto dos seus textos é o mar e as suas viagens. Como você vê a relação entre escrever e navegar? Você pensa em escrever sobre outros temas ou escrever ficção?
Foram os relatos dos meus pais e os livros de viajantes que me permitiram desejar navegar. Eu não teria tido esse desejo sem os textos, nem acreditaria que era possível. Acho que é obrigação de quem tem o privilégio de empreender sobre um sonho, deixar os relatos sobre o caminho. Além disso, o texto me ajuda a encontrar palavras para sensações e intenções que não consigo digerir. Não conseguiria escrever sem navegar, nem navegar sem escrever.