Sob as ordens do governador Cláudio Castro (PL), as forças de segurança pública do Rio de Janeiro realizaram no dia 28 de outubro a operação mais letal da história do Brasil. De acordo com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, a operação policial foi iniciada após mais de um ano de investigação e dois meses de planejamento. A operação deveria cumprir mandados expedidos pela 42ª Vara Criminal da Capital e com foco principal no líder do Comando Vermelho, Edgar Alves de Andrade, vulgo “Doca” ou “Urso”, que não foi encontrado. Durante a ação, a cidade do Rio entrou no estágio dois de atenção, ou seja, risco de ocorrência de alto impacto.
O levantamento de pesquisa da AtlasIntel, realizado entre a quarta, dia 29, e quinta-feira, dia 30, mostrou que a operação teve apoio de 55% dos brasileiros. No Rio de Janeiro, a porcentagem foi maior: 62% disseram aprovar a operação, com o percentual aumentando ainda mais entre os moradores de favelas (80%). De acordo com o Datafolha, a operação policial foi vista como um sucesso por 57% dos moradores do Grande Rio.
A Operação Contenção tinha como objetivo, segundo a Segurança Pública do Rio de Janeiro, conter os avanços do Comando Vermelho. Foram mortas 122 pessoas, entre as quais, 4 policiais. A Operação Contenção evidencia outra camada do problema: as consequências são sempre sentidas, de forma desproporcional, pelos moradores de favela, cujas vidas seguem submetidas à negligência sistemática do Estado e da sociedade civil.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
A jornalista Cecília Olliveira, cofundadora do Intercept Brasil, diretora fundadora do Instituto Fogo Cruzado e diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, analisa criticamente como essa guerra não acaba nos presídios. Segundo Cecília, há pessoas que entram no sistema penitenciário sem serem filiadas a nenhuma facção. O resultado disso é que, mesmo quem não exista nenhuma ligação, acabam sendo inseridos em ambientes controlados por grupos organizados.
Ali dentro, para sobreviver e ter acesso a condições mínimas, essas pessoas são obrigadas a se faccionalizar. E, quando saem da cadeia, saem filiadas. Porque, na prática, não existe “pedido de demissão” de facção. A única forma de sair é se um pastor se responsabilizar por você. Em outras palavras: a única saída é morrer ou virar evangélico”
Cecília Olliveira
Cecília enfatiza que essa lógica transforma o sistema penitenciário em um verdadeiro motor de recrutamento. “Assim, a negligência estatal transforma as prisões em ambientes onde facções crescem, se estruturam e continuam comandando atividades criminosas, muitas vezes com ainda mais poder do que tinham antes de entrar”, afirma.
A facção no Brasil
O Comando Vermelho (CV), uma das facções mais perigosas do país, se formou no ano de 1979 dentro do Instituto Penal Cândido Mendes da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Inicialmente, eram identificados como Falange Vermelha, durante a Ditadura Militar, a partir do início da década de 1970. O lema “paz, justiça e liberdade” representava as ideias de solidariedade e organização que apareceram com a junção de presos políticos, que lutavam contra o regime militar, com presos por assaltos, roubos e tráfico. Isso refletia as condições de superlotação, precariedade, tortura e maus-tratos dos presídios praticadas pelo Estado na época.
Já na década de 1980, com a troca dos líderes, o negócio passou para o tráfico de drogas e armas com a chegada da cocaína no Brasil, estruturando-se, de fato, como uma organização criminosa. Isso tudo acontecia dentro da cadeia por meio de visitas feitas com vista grossa dos guardas. As propinas eram altas para transportar tanto as drogas, quanto armas de fogo. Nos morros, eles controlavam territórios, mas ajudavam a população da região, o que gerava uma oscilação entre medo e apoio. Apoiaram até a Igreja Católica pelo apoio espiritual aos presos e foram contra o crescimento das Igrejas Evangélicas pelo apelo de fúria ao pecado. Segundo o jornalista Carlos Amorim, em seu livro Comando Vermelho: A História Secreta do Crime Organizado.
Com o crescimento do Comando Vermelho, muitas brigas por poder, dinheiro e território ocorreram, o que levou à separação e criação de novas facções como, o Terceiro Comando (TC), e o Amigos dos Amigos (ADA) criada por ex-integrantes, hoje, quase inexpressiva, de acordo com Cecília. Com essas três principais facções do Rio de Janeiro, durante os anos 1990 e 2000, houve um aumento de violência urbana, ausência de presença do Estado nas comunidades e devido às guerras de facções, ocorreram por vários anos centenas de mortes, deslocamentos forçados de moradores e, principalmente, operações policiais nas favelas. E atualmente, a condição não é diferente.
Vale ressaltar que as mesmas condições escassas que foram os estímulos para eclosão dessa quadrilha são os catalisadores que perduram o ciclo de violência até os dias atuais. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN – 2021), existiam aproximadamente 680 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil. Entre 2011 a 2021, havia cerca de duas pessoas por vaga, em média, 66% mais presos do que as vagas existentes. Além do orçamento voltado para o sistema carcerário poder ser realocado para outras áreas, como da saúde, da educação e da moradia, essa é uma das razões para garantir uma ocupação correta das celas.
A falta de acesso à água, comida e produtos de higiene pessoal; infraestrutura deteriorada; escassez de profissionais de saúde e assistência social; e ausência de programas educacionais e de trabalho são todos atos inconstitucionais, ou seja, o cumprimento deles está protegido pelos Direitos Humanos. De acordo com Cecília Olliveira “Quem passa a suprir essas necessidades são as próprias facções. Essa distorção da ação do Estado abre espaço para que líderes criminosos controlem a massa carcerária, prestem serviços que deveriam ser públicos — como proteção, itens de higiene, apoio às famílias e até defesa jurídica — e ganhem força e lealdade dentro das cadeias”. Sendo assim, é uma porta de recrutamento para o crime organizado, ao invés de ser um espaço de ressocialização e reintegração para a sociedade. Mesmo aqueles que conseguem cumprir sua pena, não encontram emprego e acabam retornando para a criminalidade. Segundo o DEPEN (2022), o índice geral de reincidência no primeiro ano é de 21%, aumentando para 38,9% depois de cinco anos após a soltura.
Enquanto uma minoria concentra riqueza, a maioria vive na precariedade e sem perspectivas. De acordo com SINASE (2023), 43% dos atos infracionais são por roubo; 24% por tráfico de drogas; 10% por homicídio; 6% por porte ilegal de arma de fogo; O restante se divide entre furto, latrocínio e outros crimes menores. Esses números mostram que a maioria dos jovens entra no crime por motivações econômicas, não por crimes violentos inicialmente.
Ademais, Cecília Olliveira explora também as relações de poder envolvidas do “outro lado da moeda”, corroborando com a visão da institucionalidade da criminalidade em que se introduzem as ações policiais nas favelas do Rio de Janeiro. A jornalista diz que o Estado é tanto origem quanto motor de grupos armados – dentro e fora dos presídios. “A polícia, nesse contexto, é ferramenta, não o fim, usada como um meio para atingir objetivos maiores, como o controle de territórios e o acesso ao orçamento público por meio da política institucional”, explica Cecília.
A ação mais letal da história
A Operação Contenção deixou mais de 120 mortos, entre eles, suspeitos, moradores de comunidades e quatro policiais. No enterro de Rodrigo Velloso Cabral, de 34 anos, policial civil com apenas 40 dias de nomeação como inspetor, segundo registro do jornal O Globo, a mãe desabafou: “Meu filho era amor, meu filho era sorriso. Os bandidos encurralaram ele, assim como o delegado. Aquele infeliz do [ governador do Rio ] Cláudio Castro sabia que os policiais não tinham condição de encarar o CV. Meu filho só tinha 40 dias de corporação“, lamentou Débora Velloso Cabral.
Em entrevista à Itatiaia, na saída do IML, Taua Brito, mãe de Wellington Brito, recebeu uma das últimas mensagens do filho momentos antes dele ser morto. O jovem ficou encurralado na região da Mata da Vacaria, durante os confrontos. “Eu nunca apoiei a vida que meu filho levava […] A gente também precisa que aconteça mudança, porque para governar um estado não é só chegar dentro de favela e ficar tirando vida não, é muito mais que isso. É dar oportunidade, visão para que eles possam ver coisas diferentes do que a realidade de uma favela”, declarou.
Rio de Janeiro fez eu aprender que
Major RD em “Favela Vive 5”
Se eu pisar onde eu não devo
Eu morro com fama de traficante
Durante a madrugada e parte da manhã do dia 29 de outubro, moradores da região do Complexo da Penha retiraram cerca de 60 corpos da região de mata e dentro das casas dos moradores. A Praça da Penha, na zona Norte do Rio de Janeiro, amanheceu com uma fila de corpos estendidos em uma lona, com marcas de tiros, e alguns, com partes do corpo faltando. De acordo com explicações das autoridades e especialistas, os corpos não foram retirados por policiais por diversos motivos, entre eles de “preservação” para investigação da perícia. Para o secretário da Polícia Civil, Felipe Curi, os corpos da megaoperação contra o Comando Vermelho foram retirados da mata pelos moradores sem autorização prévia. Segundo ele, os suspeitos estavam com roupas camufladas e coletes balísticos, mas os corpos enfileirados na Praça da Penha por populares estavam com trajes íntimos e bermudas. Por fim, o secretário de Segurança Pública, Victor Santos, reforçou que as forças de segurança não sabiam da existência dos corpos, acentuando a contradição nas versões apresentadas.
O Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou novas denúncias contra seis policiais militares que estavam na Operação Contenção no dia 28 de outubro. De acordo com as denúncias, baseadas nas avaliações e análises dos vídeos captados pelas câmeras operacionais portáteis, o 3º sargento Marcos Vinicius Pereira Silva Vieira recolhe um fuzil semelhante a um AK-47 em uma residência onde cerca de 25 homens já estavam rendidos. A câmera mostra que em vez de encaminhar a arma ao grupo responsável pela contabilização do material apreendido, ele se afasta do local e logo após, outro sargento coloca o fuzil dentro de uma mochila e deixam de registrá-lo entre os itens apreendidos.
No livro de Cecília Olliveira, “Como nasce um miliciano: A rede criminosa que cresceu dentro do Estado e domina o Brasil”, a autora aprofunda a grande rede de conexões entre milícias, o tráfico de drogas e o envolvimento direto de agentes do Estado nas organizações criminosas. “Eles utilizam a farda, a estrutura institucional e o discurso de “combate ao crime” como fachada para construir poder político e econômico”, diz a jornalista. De acordo com a autora, é necessário operações policiais menos danosas quando elas são de fato mais planejadas e “é justamente por isso que o planejamento precisa ser pensado de forma abrangente, considerando efeitos de médio e longo prazo. Quando se desarticula um núcleo de um grupo armado, mexe-se diretamente na geografia destes grupos”.
Planejamento e desarticulação
Em 2002 o jornalista gaúcho Tim Lopes, investigava casos de abuso de menores e tráfico de drogas dentro de bailes funks no Rio Janeiro, na Vila Cruzeiro, na Penha, usando apenas uma mini câmera em sua cintura. Desapareceu em 2 de junho daquele ano, depois de traficantes descobrirem sua investigação. A mando de Elias Maluco, o jornalista foi sequestrado, torturado e carbonizado a ponto do seu corpo ser apenas reconhecido em 5 de julho por meio de teste de DNA.
A chamada Operação Sufoco, contava com 250 agentes que procuravam Elias Maluco, que estava desaparecido. Um grampo telefônico foi usado para identificar a área que ele estava escondido. Depois de uma piada sobre um dos policiais, comparando-o com o seu Creysson do programa de humor “Casseta e planeta”, a inspetora Marina Maggessi, que estava acompanhando o grampo, relatou aos policiais e isso ajudou com que eles se aproximasse do local onde o criminoso estava. Apesar de ter ocorrido troca de tiros, não ocorreu nenhum civil ferido, Elias Maluco se rendeu quando foi capturado e levado para prisão em setembro de 2002, na favela da Grota, no complexo do Alemão. No mesmo ano, Benedita da Silva assumiu o cargo de governadora do estado do Rio Janeiro, sendo a primeira mulher negra a assumir essa posição.
Essas operações podem sim afetar a população, no caso do Elias Maluco ocorreu repercussões relacionadas à reconfiguração interna da facção da qual ele fazia parte, mas como Cecília Olliveira explica: “Essa mudança sacode a favela e a cidade de outra forma, mas é um efeito que não está diretamente ligado à operação policial em si, mas sim às consequências políticas e territoriais dentro da organização criminosa.”
Um outro exemplo desse tipo de mudança que afeta a própria dinâmica do local foi a morte do miliciano Ecko, Wellington da Silva Braga. Chefe da maior milícia em atividade do estado e o criminoso mais procurado do RJ, ele foi morto em 2021 em uma ação da Polícia Civil. Sua quadrilha — o Bonde do Ecko — dominava boa parte da Zona Oeste e regiões da Baixada Fluminense. Desde então, essa milícia rachou em duas: uma parte comandada por seu irmão, Zinho, e outra liderada por Tandera, seu ex-braço direito. Para Cecília Olliveira, operações que visam “capturar” um líder do crime, precisam pensar também em outras regiões que irão ser afetadas com isso “A eliminação ou captura de um líder não afeta apenas aquele grupo, mas influencia a ação de outros atores criminosos e reconfigura o mapa do crime. Todas essas consequências precisam ser antecipadas e consideradas pelos setores de inteligência “, reitera.
Em 4 de novembro de 2025, ocorreu uma operação contra o Comando Vermelho na Bahia que prendeu mais de 30 suspeitos. A operação Freedom bloqueou 51 contas bancárias ligadas ao crime, com uma morte após um suspeito reagir a abordagem policial. O estado é conhecido por ser um dos mais violentos do Brasil, ficando apenas atrás do Amapá, com 40,6 mil, com decorrente violência contra a população por parte da polícia. Essa ação ocorreu apenas uma semana depois da operação que aconteceu no Rio de Janeiro, que causou uma das maiores chacinas do estado.
Da favela 1 ao 6, quantos ´menor` eu citei
DK 47 em “Favela Vive 6″
Que antes dos 16 já foram assassinados
Podia ser o filho de vocês
Favela não venceu, no máximo tem empatado
Já “em Brasília, capital do poder no país, ocorreu uma operação contra empresas de saúde de fachada, que, além de ter gerado prejuízo para o distrito, não resultou em suspeitos presos. O chefe do maior esquema de tráfico internacional de armas no Brasil é um policial aposentado, Josias João do Nascimento, morador do condomínio de luxo Alphaville, na Barra da Tijuca, que foi alvo da operação em março deste ano, o esquema enviava armas de Miami para o Comando Vermelho. Durante a apreensão o ex-policial disparou tiros contra a polícia e foi preso por tentativa de homicídio.
Impacto das operações nos projetos sociais
No coração do Complexo da Penha, o Abraço Campeão, projeto social na zona norte do Rio de Janeiro, surgiu da vontade profunda de criar um espaço seguro, humano e acolhedor onde crianças e jovens pudessem sonhar. Hoje, a organização transforma centenas de vidas através do boxe. Em entrevista, Alan Duarte, fundador e CEO do Abraço Campeão conta que o projeto nasceu dentro da própria história de vida. “Eu cresci no Complexo do Alemão e vi de perto como a falta de oportunidades e a violência atingiam as famílias, os jovens e até meus próprios amigos. O boxe foi a ferramenta que me ajudou a encontrar disciplina, autoestima e um caminho diferente. Quando percebi que essa transformação não podia ser só minha, entendi que precisava devolver isso para o território”. A iniciativa surgiu da vontade profunda de criar um espaço seguro, humano e acolhedor.
Com o aumento das operações policiais na favela, os projetos são impactados negativamente com a restrição das atividades e o alto risco de violência contra os jovens atendidos pela instituição. Com a recente operação no Complexo do Alemão, Alan Duarte conta que não é somente a rotina que é interrompida e sim a saúde mental e física da comunidade. “Quem vive na favela cresce aprendendo a lidar com o medo e incertezas. Para as crianças e os jovens, o impacto é ainda maior: o medo de sair de casa, interrupção dos estudos e até uma visão distorcida do próprio futuro. É uma violência que ultrapassa o momento da operação e fica na memória, no corpo e no comportamento.” O líder social complementa que apesar dos casos recorrentes de violência nesse território, percebe mudanças significativas no comportamento dos jovens atendidos. “Eles começam a acreditar em si mesmos, a se ver como protagonistas e não como estatísticas. Muitos descobrem talentos, conseguem emprego, voltam para a escola, fortalecem suas relações familiares e passam a sonhar grande”.
Cecília Oliveira evidencia que os projetos sociais das comunidades são fundamentais, não só como meras alternativas ao crime, mas como garantia de direitos e oportunidades que o Estado historicamente não oferece. A jornalista complementa que os projetos ampliam redes e mostram caminhos fora do contexto de violência “mas esses projetos não resolvem tudo sozinhos: precisam estar aliados a políticas públicas estruturantes”, afirma a jornalista.
O fundador do Abraço Campeão discute que a mudança para que jovens de favela não precisem conviver com o medo e a insegurança são as políticas públicas sérias, que realmente entendam a favela para além da lógica de segurança. “Investir em educação, cultura, esporte, saúde mental e oportunidades reais de desenvolvimento é o que transforma territórios. O jovem precisa de presença, não apenas de presença policial. Precisa de escola funcionando, equipamentos culturais, políticas de emprego, espaços seguros e projetos sociais fortalecidos. E, principalmente, precisa ser ouvido. A favela é parte da solução. O que falta é o Estado enxergar seu potencial e investir na vida das pessoas, não apenas na repressão”, conclui Alan Duarte.
Reportagem produzida por Ana Luísa Amorim, Isabella Silva e Luiza Barbosa
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