Em 2 de outubro de 2016, depois de quase vinte e cinco anos usando um pseudônimo para publicar seus livros, a escritora italiana Elena Ferrante foi descoberta.
Com mais de dez obras publicadas, Elena Ferrante lançou seu primeiro livro, “Um amor Incômodo”, em 1991. Foi a partir de 2013, no entanto, que a autora virou um fenômeno editorial. Com o lançamento dos últimos volumes da “Tetralogia napolitana”, série de livros sobre a história de duas amigas criadas na periferia de Nápoles nos anos 1950, ela se consolidou no mercado e estabeleceu um grupo fiel e dedicado de leitores em todo o mundo. Em 2018, a “Tetralogia Napolitana” ganhou uma adaptação para a TV em uma parceria entre a HBO e a italiana RAI. Em 2020, seu último lançamento, “A vida mentirosa dos adultos” chegou ao Brasil, indo direto para as listas de mais vendidos.
Mas ao longo da maior parte de sua carreira, ninguém sabia quem era Ferrante. Sua verdadeira identidade foi divulgada em reportagem assinada por Cláudio Gatti há 5 anos, resultado de uma longa e minuciosa investigação, que apontou Anita Raja como o nome por trás de Ferrante, uma das mais notáveis autoras da contemporaneidade. Gatti, no entanto, se abstém da responsabilidade sobre a violação da privacidade da autora, e recebeu críticas sobre os limites éticos de sua investigação.
Reportagem que identificou Elena Ferrante contou com investigação minuciosa
Escrita em primeira pessoa pelo jornalista investigativo italiano Cláudio Gatti, a reportagem indica que Anita Raja, tradutora ítalo-alemã, seria Elena Ferrante. Publicada no mesmo dia em veículos da Itália, França, Alemanha e Estados Unidos, a matéria se estende em detalhes sobre a investigação minuciosa feita pelo jornalista, que rastreou registros de imóveis comprados por Anita Raja e seu marido, o também autor, Domenico Starnonne, e transferências bancárias da editora Edizioni e/o, que publica Ferrante na Itália, para Raja, registrada como tradutora na mesma empresa.
Os registros investigados por Gatti remontam ao ano 2000, quando, após a estreia bem sucedida de “L’amore molesto”, filme baseado no primeiro livro de Ferrante, Anita Raja comprou um apartamento de sete quartos em um bairro nobre de Roma.
Claudio Gatti também investigou o crescimento da receita da editora Edizioni e/o entre 2013 e 2015, anos que marcaram o início do sucesso da autora no mercado internacional, e cruzou dados de pagamentos feitos pela editora a Anita Raja. O jornalista também identificou a aquisição de imóveis na Itália por Domenico Starnone, autor casado com Anita Raja.
Na reportagem, Gatti ressalta que a profissão de Raja, que atua como tradutora, é, segundo ele, “notoriamente mal paga”, o que, somado aos outros detalhes financeiros investigados por ele e expostos na reportagem, comprovaria que Anita Raja é a pessoa por trás do nome Elena Ferrante. O próprio jornalista conta que, ao conversar com os proprietários da editora e expor os detalhes da investigação, eles disseram que a matéria era “Uma invasão de privacidade, nossa e de Ferrante.”
Sintomas da pós-modernidade
Para o professor da PUC Minas e mestre em Filosofia Thiago Teixeira, que acaba de lançar seu segundo livro, existem característica dessa história que marcam as relações na contemporaneidade: “A gente percebe que um dos fatores mais marcantes da nossa realidade são pressupostos, como a hiperexposição, o narcisismo e a autovalorização de si. Trata-se de uma auto centralidade, que nos coloca à distância da responsabilidade pelos outros sujeitos.”
A própria justificativa de Claudio Gatti sobre a investigação realizada revela muito sobre essa falta de responsabilidade com outros sujeitos e sobre as regras do mundo contemporâneo. Após expor longamente suas provas, no último parágrafo da reportagem, Gatti se justifica: “Em uma era em que fama e celebridade são desesperadamente procuradas, a pessoa por trás de Ferrante aparentemente não queria ser conhecida. Mas o sucesso sensacional de seus livros tornou a busca virtual por sua identidade inevitável. Também foram deixadas provas financeiras que falam por si mesmas.”
Ao ponderar sobre o desrespeito à escolha de Ferrante, Fabiane Secches, autora do livro “Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência”, acha difícil imaginar, em um mundo que incentiva o culto a celebridades, que essa recusa de participar do mundo literário nos termos convencionais pudesse ser respeitada a longo prazo.
É uma violação que faz todo sentido se pensarmos nos valores contemporâneos. Não diria que foi uma surpresa, ao contrário, foi uma reafirmação das leis que gerem o nosso mundo.
Fabiane Secches
Fabiane completa: “Não acredito que a investigação tenha afetado as características da escrita de Ferrante mas, provavelmente, a afetaram pessoalmente e profissionalmente pois ela sempre valorizou esse espaço que o pseudônimo ofereceu. De todo modo, que bom que ela continuou a escrever e a publicar.”
Respeito ao anonimato
Isabela Discacciatti, acompanhante turística na Itália e criadora do perfil de Instagram @clubeferrante diz que acredita que a investigação que revelou a identidade de uma de suas autoras preferidas foi “muito violenta e muito arbitrária”:
Segundo ela, em um momento em que o mercado literário busca aumentar suas vendas, “e as pessoas estão querendo vender, estão querendo aparecer, estão querendo ser famosas”, uma pessoa que faz a escolha inversa não tem que ser violentada: “Na minha opinião, ela tem que ser respeitada, e por que não, exaltada. Eu acho que foi bem desrespeitoso com a escolha de uma pessoa. Em nome do quê, eu me pergunto. Isso não vai servir ou para vender mais livros ou para trazer mais fama”, acredita ela.
Já Camila Petrovitch, pedagoga e pesquisadora de literatura infanto-juvenil, tem outra opinião. Aos 23 anos, Camila é criadora do perfil de Instagram @bambolerr, em que compartilha dicas de literatura e acontecimentos do seu dia-a-dia. Leitora de Elena Ferrante, Camila Petrovitch diz que acha a escolha da autora inusitada: “Por que alguém se esconde como autor? Com uma celebridade, você entende, até pela tietagem, por ter muita gente perseguindo, mas com autores eu não vejo isso tão forte. E o fato de ela ter escolhido o anonimato é muito curioso”.
Direito ao esquecimento
Em 2020, o jornalista Chico Felitti lançou o podcast Além do Meme, no qual investiga o que aconteceu com a vida de pessoas que se tornaram memes. Com dez episódios, a produção fala sobre diversas pessoas que tiveram suas vidas expostas, mas, ao contrário de Elena Ferrante, viraram piada.
No último episódio, Felitti fala sobre o caso do menino de treze anos que, ao publicar na internet um vídeo gravado para o seu bar mitzvah virou meme e teve a vida revirada. Ao falar sobre o meme, o jornalista reflete sobre o direito ao anonimato e ao esquecimento e recorre ao artigo publicado por Érica Avellar sobre o tema para definir o conceito:
O direito ao esquecimento é uma ferramenta concedida ao indivíduo, em especial ao indivíduo que vive na sociedade da informação, que lhe permite escolher como serão tratados os seus dados pessoais.
Apesar de serem conceitos diferentes, a violação do direito ao esquecimento e do direito ao anonimato convergem em um ponto: ambas ultrapassam os limites éticos do respeito à individualidade. Tal violação leva-nos a repensar a ética na contemporaneidade. Conforme o professor Thiago Teixeira explica:
Pensar a globalização e as tecnologias, ou a sociedade mais midiática também é pensar novos desafios, porque cada vez mais os valores de violência que dão sustentação às nossas experiências sociais estão mais difusos, e há uma ritualização da violência nas redes sociais.
Thiago Teixeira
Segundo ele, as reflexões éticas são urgentes nesse cenário de mobilização das responsabilidades com o outro: “Essa percepção de que o que nós falamos, o modo com que nós agimos, o que nós consumimos afeta drasticamente o tipo de sociedade que a gente quer ter”, conclui.