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E se, por acaso, o mundo ficasse um pouco mais quente?

Colagem feita com imagens de chaminés de indústrias sobrepostas com flores secas em tons de laranja

Colagem de autoria de Ísis Silva

A série The Last of Us teve seu último episódio da temporada de estreia transmitido no último domingo, 12 de março, e tornou-se um fenômeno global, sendo muito bem avaliada pela crítica e pelos telespectadores. A série acumulou elogios em relação ao cuidado da HBO na produção, aos episódios com roteiros afiados, à trilha sonora e à escolha do elenco. Algo que tem se destacado nas avaliações da crítica é a forma como os criadores Neil Druckmann e Craig Mazin conseguiram adaptar o jogo de videogame para a televisão. Em vários momentos, a série impressiona pela semelhança entre as cenas do jogo e a adaptação.

Nas telas, o drama de Ellie e Joel contra um fungo que transforma todos em zumbis também contou com novas cenas adicionadas à trama principal, que não faziam parte da narrativa original. Uma das mais emblemáticas é a cena do primeiro episódio, que apresenta uma entrevista com cientistas (foto).

O trecho indica o clima de tensão que pautará a série, mas com uma perspectiva de calmaria antes do caos. Na entrevista, os cientistas antecipam eventuais perigos que os protagonistas irão enfrentar enquanto contam o que aconteceria com uma possível mutação genética dos fungos. O cenário proposto durante o diálogo do prólogo deixa a plateia e o entrevistador atônitos. Apesar de ser uma série ficcional, a fala do especialista poderia ser interpretada como um alerta para a nossa sociedade.

O que aconteceria se a temperatura do mundo ficasse um pouco maior?

Nós perderíamos.

Diálogo entre entrevistador e cientista na cena de abertura de The Last of Us
Reprodução / HBO Max

Para Joel e Ellie já é tarde demais, e para nós?

“Em geral todo filme de ficção científica começa com um cientista que não é ouvido” .

Roxana Tabakman

A cena com o cientista não é exclusiva das obras de ficção. A bióloga, jornalista científica e escritora Roxana Tabakman compartilhou uma experiência parecida após a publicação do seu livro Biovigilados, em 2018. A obra conta a história de uma talentosa pesquisadora que, ao desenvolver a vacina para um vírus respiratório surgido na Ásia, durante a imunização, acaba liberando sem querer uma dose alterada que produz monstruosas mutações genéticas. No decorrer da campanha de promoção do livro, a autora contou que teve oportunidades de falar sobre divulgação científica em suas entrevistas. “Depois da pandemia, eu tive muitas entrevistas, um surto de entrevistas, eu poderia falar. Mas quando eu estava na época de promoção do livro, as pessoas perguntavam, “isso pode acontecer?”. Pergunta clássica de um filme ou um livro de ficção científica”. 

São inúmeros os exemplos de filmes e séries distópicos que podem servir de alerta para a maneira com que a sociedade tem atuado em relação às questões climáticas no mundo real, como Avatar e Interstellar. Um ponto geralmente convergente em filmes desse gênero é a responsabilidade dos humanos como agentes determinantes para o fim do mundo. Mas, há algum tempo, estes filmes têm deixado de ser apenas histórias ficcionais e se aproximado de representações de um futuro muito próximo e bastante possível, caso a sociedade continue ignorando a ciência e as mudanças climáticas, caminhando na direção errada.

Mesmo que isso não apareça no livro [as mudanças climáticas], eu conseguia falar disso nas entrevistas, então, para mim, foi uma oportunidade ótima para fazer divulgação científica de meio ambiente.

Roxana Tabakman

No atual cenário, cientistas ressaltam a necessidade e urgência de uma mudança radical. São diversas pesquisas que apontam o agravo da questão climática e a proximidade de um “ponto de não retorno”. A temperatura do planeta tem crescido exponencialmente nos últimos anos e os desastres ambientais têm se tornado mais frequentes. De acordo com o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), impactos muito mais severos podem estar nos esperando se não reduzirmos as emissões de gases do efeito estufa pela metade ainda nesta década.

Secas devastadoras, calor extremo e inundações recordes ameaçam a segurança alimentar e os meios de subsistência de milhões de pessoas. Em um discurso na COP 27, realizada no Egito, o secretário geral da ONU, António Guterres, falou que a humanidade tem uma escolha: cooperar ou perecer. Ele destacou a importância das nações unirem esforços em um pacto pela solidariedade climática. Entretanto, o que testemunhamos é um incentivo ao individualismo selvagem, em que a soberania, o poder e a ganância dos países se sobrepõem à preocupação com o iminente desastre do meio ambiente.

Em se tratando de The Last of Us, o fungo Cordyceps, apontado como o causador da tragédia humanitária do mundo pós-apocalíptico em que Ellie nasce é, na realidade, uma herança e um potencializador do descaso ambiental provocado pelos humanos. Em sua  característica distintiva, o fungo atua como um único organismo vivo, que se fortalece por uma rede de conexões entre os infectados, justamente o oposto à individualidade da nossa sociedade. A dificuldade de se entender como uma coletividade, como parte de um todo, é a força do fungo contra os humanos.

Ellie, por sua vez, imune à infecção do fungo, é a esperança de salvação da humanidade, reside nela a possibilidade de criação de uma vacina, e mesmo assim, ela precisa esconder sua condição, uma vez que, novamente, o maior perigo são os humanos, a falta de solidariedade e de pensar num bem comum. Entretanto, esta jovem, nascida em um mundo caótico e perverso, rodeada de crueldade, que precisa encarar ainda criança a selvageria dos humanos, representa algo muito maior, uma oportunidade de mudança.

Para além do entretenimento, Roxana destacou a contribuição da ficção científica no desenvolvimento do interesse das novas gerações por pautas relevantes como a crise do clima e a necessidade de conscientização em relação às mudanças que se impõem nesse quadro: “Sem dúvida o aprendizado emocional é o que fica. Então, se você gostou do livro, do filme, do seriado, isso vai ficar mais do que você aprender na sala de aula de outra maneira. Não que tudo deva ser ensinado desse jeito, mas gera uma curiosidade que depois pode levar as pessoas a se interessarem mais pelos assuntos. Eu não tenho dúvida nenhuma que a ficção ajuda”.

O cientista precisa da imaginação, os comunicadores precisam da imaginação, as crianças precisam da imaginação e é isso que vai mudar como vamos enfrentar o futuro. Não é repetindo as ideias de outros, mas criando novos mundos que sejam melhores do que os nossos. Então, sem dúvida, acho que o cinema e a literatura têm tudo a ver.

Roxana Tabakman

Perguntada se esses filmes e séries também podem ser encarados como alertas de uma realidade possível, Roxana diz ter um olhar mais positivo sobre a questão. “Tenho esperança que a ciência vai encontrar novos caminhos, então, eu não mostraria apenas a distopia. A gente tem que mostrar que outro futuro é possível, com pesquisas, com cientistas trabalhando, com tecnologia sendo bem utilizada e com pessoas tomando boas decisões. Acho que a resposta é sim, mas não apenas de distopia, acho que pode ter um ‘cadim’”’ de utopia”.

Texto produzido por ocasião do Dia Internacional da Conscientização pelas Mudanças Climáticas.
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