A ampla campanha de vacinação contra covid-19 implementada no Brasil a partir de meados de 2021 permitiu o retorno dos grandes eventos culturais em todo o país. Em meio à empolgação com a realização de festas e shows, um público específico, no entanto, continua sendo deixado de fora: as pessoas com deficiência (PCD) e com mobilidade reduzida.
No contexto da retomada cultural, a expectativa para que o desenho universal fosse seguido à risca na divulgação e efetivação desses eventos acabou não se realizando.
Mas o que é o desenho universal?
O desenho universal pode ser entendido como o processo de criação de produtos e/ou espaços acessíveis a todas as pessoas, independentemente de suas características pessoais, físicas e cognitivas.
Marcos Fontoura, doutor em Ciências Sociais, urbanista e analista de transporte público da BHTrans explica que esse acesso é garantido à população a partir da Lei Brasileira de Inclusão, de número 13.146/15, que entrou em vigor no ano de 2015. Até aquele ano, a acessibilidade era opcional para estabelecimentos, porém, agora, ela é um direito público. Essa lei é destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoas com deficiência, a favor de sua inclusão social e exercício da cidadania.
Para Fontoura, no entanto, o desenho universal não está presente no transporte público de Belo Horizonte como deveria. Ao apresentar o exemplo do BRT (Bus Rapid Transit), ele afirma que o fato de haver uma porta separada para pessoas com algum tipo de impedimento na mobilidade é um tipo de segregação que implica exclusão. Implica também, que para se deslocar para eventos culturais, pessoas com deficiência que dependem do transporte público na capital já começam a se sentir impedidas antes mesmo de chegar nos locais de realização dos eventos.
Desafios para a mobilidade PCD na capital mineira
Belo Horizonte é conhecida nacionalmente por ser uma cidade com uma grande variedade cultural, com opções para diferentes faixas de renda. Para garantir o acesso à cultura por todos, em toda a cidade, é importante que o poder público se mobilize no sentido de expandir e melhorar as condições de mobilidade urbana. Além disso, é importante que exista a cultura cidadã, que pressupõe uma ética de cuidado, de convivência e de reconhecimento da existência do outro. Fontoura comenta que as condições de transporte público, quando não satisfatórias, geram revolta contra funcionários dos veículos, ao invés de mobilização por direitos junto à Prefeitura e aos demais órgãos públicos responsáveis. Para ele, o transporte público deveria ser tão bom que as pessoas escolheriam esse meio de transporte por vontade própria, não apenas por necessidade: “Hoje em dia, as pessoas usam o ônibus só quando precisam. O ideal seria usar o ônibus pra passear, dar rolê com calma e ver a cidade!”, afirma.
Uma alternativa para a melhoria do acesso de PCD seria a adoção do piso baixo nos veículos de transporte coletivo, já usado em capitais brasileiras como Curitiba – tal alternativa, no entanto, pode ser mais complicada para implantação em Belo Horizonte, em razão da quantidade de morros da geografia da cidade.
Uma outra situação de preocupação nos transportes coletivos é a falta de praticidade nos elevadores hidráulicos para cadeirantes, que precisam da ação do motorista (que já trabalha sozinho no automóvel), que tem que sair do seu posto de trabalho, ir até a área externa do ônibus, abrir a porta manualmente, acionar o elevador e, dessa maneira, possibilitar a entrada da PCD ou com mobilidade reduzida. Com frequência, esses elevadores também não estão funcionando, o que causa desconforto para o usuário, que não tem a possibilidade de realizar o deslocamento.
Fontoura também aponta outra situação de descaso, que é o fato de muitos motoristas, por saberem do trabalho que é acionar o elevador hidráulico, optarem por pular o ponto, deixando os passageiros à espera. Pessoas atingidas por essas atitudes não são apenas pessoas com deficiência, mas também aquelas com mobilidade reduzida, que temporariamente precisam de aparelhos especiais para locomoção, como bengalas ou muletas.
Estações do MOVE em Belo Horizonte têm problemas de acessibilidade
Em entrevista ao Colab sob condição de anonimato, um vigilante de segurança da Estação Vilarinho, situada na regional de Venda Nova, na Grande BH, relatou situações desconfortáveis para pessoas com mobilidade reduzida no local: “Tudo está errado!”. Ele conta que frequentemente precisa ajudar pessoas em cadeiras de rodas para comprarem lanche na cantina, que é inacessível: “As pessoas chegam: ‘Moço, você pode me ajudar? Eu queria comprar um lanche, ‘tô com fome, mas eu ‘tô numa cadeira de rodas. Você pode comprar pra mim?’”.
Quando questionado sobre as condições do local, o funcionário esclarece que o acesso ao restaurante é possível apenas via escadas, uma vez que o único elevador disponível é exclusivo para serviço e as pessoas em cadeira de rodas não têm acesso a ele. Mesmo podendo entrar e sair dos ônibus por meio da escada móvel, os usuários não têm acesso a todos os serviços da estação devido às escadas.
Greve dos metroviários
No dia 21 de março de 2022, os metroviários de Belo Horizonte entraram em greve com demandas a favor de melhores condições de trabalho, sem previsão para término. Parte da frota de ônibus também aderiu à greve como forma de apoio, o que causou superlotação nos ônibus na data. Até o momento da publicação desta reportagem, os servidores metroviários não retomaram as atividades, uma vez que ainda não receberam retorno governamental em relação às pautas de desistência da resolução 206, que regulamenta o processo de privatização da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) em Minas Gerais, além do aumento salarial. Nos ônibus, por sua vez, está sendo previsto um aumento de cerca de 30% no valor das passagens, de acordo com decisão da Justiça do início de abril. A data para cobrança do novo valor ainda está para ser anunciada.
Desrespeito aos PCDs no acesso a ambientes culturais
No dia 4 de março de 2022, a advogada, publicitária e influencer Bárbara Magalhães foi impossibilitada de visitar um restaurante na Grande BH em razão de mudanças no planejamento técnico do ambiente. O banheiro teve sua localização alterada para o segundo andar e, por ela ter mobilidade reduzida, não conseguiu ter a experiência completa no local.
Em seu perfil no Twitter, que conta com 317 mil seguidores, a influencer relatou que:
Em entrevista ao Colab, a influenciadora digital afirmou que, em contato com a gerência do local, foi tratada com desprezo e se sentiu invisível, como se sua pauta não tivesse importância. “Eu falei ‘Cara, que bad, né? Não vou poder vir mais aqui e tal’… Ela [a gerente] tentou justificar dizendo ‘Ah, mas você sempre come tão rapidinho!’”, relatou, lamentando que não teve seu direito de poder usar o banheiro reconhecido, caso precisasse.
A influencer também relata que não se sentiu mais confortável no ambiente do restaurante e preferiu sair, decidindo voltar apenas quando o ambiente melhorasse a acessibilidade da infraestrutura.
Impacto nos grandes eventos
O estudante de Jornalismo da PUC Minas Filipe Sodré, teve paralisia na infância e anda com o apoio de um andador. Com a ajuda e companhia de amigos e de seu irmão gêmeo, ele participa da vida social belo-horizontina, sempre presente em jogos de futebol e grandes festivais de sertanejo.
O estudante acredita que a vontade da pessoa tem grande influência no acesso de PCDs a grandes eventos, porém, força de vontade nem sempre é suficiente para que pessoas com deficiência superem a falta de acessibilidade e adaptação dos espaços públicos e eventos:“A gente tem que ter mesmo uma acessibilidade maior pensando em todo mundo. Isso dentro do festival, na rua é pior ainda”, ele afirma.
Sodré reconhece que as condições da pessoa com mobilidade reduzida são muito precarizadas. O longo tempo de espera e as grandes áreas de deslocamento provocam uma fadiga maior do que aquela sentida pelas pessoas sem mobilidade reduzida. Daí a importância do tratamento preferencial em grandes eventos, como a possibilidade de acesso mais cedo e áreas de aproveitamento dos festivais com melhor acessibilidade.
Já a influencer Bárbara Magalhães conta que, nas primeiras semanas de abertura do comércio, quando os eventos tinham um número reduzido de pessoas, as cadeiras contadas garantiam uma experiência melhor para pessoas com deficiência física, mas, agora, a realidade não é mais essa, e ela lamenta: “Agora, eu evito mesmo, não me estresso pra ir nesses lugares e eu sei que eu tô errada, que eu tinha que ir, exigir do pessoal, mas é isso”.
Além disso, ela também observa que a cidade não contempla pessoas com mobilidade reduzida de forma adequada. “Restaurantes, festivais, shows aqui em Belo Horizonte são os menos acessíveis que eu vejo”. Ela cita como exemplos a irregularidade das calçadas, que impede a livre circulação, e, consequentemente, o acesso à cultura.
Incompatibilidade no discurso acessível
Muito se divulga sobre a acessibilidade em ambientes culturais, como forma de atrair público e promover o bem-estar de todos os possíveis frequentadores. No entanto, na prática, não é sempre o que acontece. Recentemente, na edição de 2022 do Lollapalooza, a humorista Lorrane Silva (@_pequenalo) passou um constrangimento ao não conseguir subir de elevador em um dos camarotes no evento. Ela teve que contar com a ajuda de uma pessoa desconhecida, que se voluntariou a carregá-la para o próximo andar. Após o incidente, a organização, que havia prometido acessibilidade, realizou o conserto do aparelho.
Em thread no Twitter, a ‘Pequena Lô’, como é conhecida, afirmou que as PCDs não deveriam deixar de ir nesses espaços, e que suas presenças deveriam servir como forma de reivindicação de direitos. “Não somos nós que temos que nos adaptar ao ambiente que não tem acessibilidade, o ambiente que tem que se adaptar à inclusão, para que a gente possa ter a independência de conseguir se locomover, independente da sua condição física”, disse, no Twitter. No mesmo fio, a influencer conta que, mesmo trabalhando no local, não teve a acessibilidade garantida.
Em situação parecida, a entrevistada @babi conta que, em momento recente, foi obrigada a usar as escadas em um local de eventos em Belo Horizonte, o Mamão com Açúcar, mesmo com mobilidade reduzida. “Na hora de sair, eles não me deixaram descer pela rampa que eu subi quando entrei. Me fizeram descer um andar e meio de escada, e o banheiro fica super longe. Lá tá bem longe de ser um lugar acessível”, lamenta. Além disso, ela relata que os funcionários não pareciam estar preparados para dar suporte para pessoas com essas características, e, por isso, fizeram com que ela fizesse uma rota desconfortável para ela. “Não adianta ter rampa na chegada e escada na saída. Horrível, bem horrível mesmo”, desabafa.
A advogada conta que toda a experiência móvel no ambiente foi desconfortável, levando em conta que o espaço conta com rampas íngremes que, mesmo com o suporte do corrimão, provocavam dificuldade no seu uso. “Eles pensam só em gente com cadeira de rodas, não pensam em gente com muletas e tal. É todo um processo. Espero que mude”.
A redação entrou em contato com a organização do Mamão com Açúcar mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.