Ana*, 25 anos, morava no interior de Minas Gerais quando foi presa por tráfico de drogas. A realidade do encarceramento tinha uma peculiaridade: grávida, não pôde ficar no presídio da cidade por falta de estrutura. Então, foi transferida para Belo Horizonte, longe da família e de conhecidos.
Que futuro uma mulher grávida, do interior tem em uma cidade grande como a capital? Prestes a dar a luz, sem saber o que seria de sua vida quando o filho nascesse, muitas eram as dúvidas.
“Eu fazia programa para conseguir dinheiro pro crack”
Ana aprendeu a usar drogas com o pai de seus filhos quando tinha 15 anos, já grávida do primeiro bebê. Usava crack constantemente, mesmo durante a gravidez. A pressão da maternidade era um desafio na juventude, o que a impulsionou ainda mais para o vício.
O bebê seria o terceiro – os outros foram deixados com membros de sua família. Ela era uma mãe muito jovem e usuária de drogas. Que estruturas o sistema carcerário oferece para que mulheres como Ana, ao saírem do cárcere, tenham uma vida digna longe da criminalidade?
Hoje, Ana já não usa drogas há dois anos e vive com o filho mais novo, mas não sabe o paradeiro dos demais, que deixou no interior antes de ser presa.
Camadas de violências
Lúcia Lamounier Sena, professora da PUC Minas, mestre em Comunicação Social pela UFMG e doutora em Ciências Sociais pela PUC, é autora do livro “I Love My White: Mulheres no registro do tráfico de drogas”, no qual problematiza a complexa relação entre gênero e crime.
A obra traz uma reflexão humana sobre a realidade de mulheres no tráfico.
A socióloga explica que existe uma construção social de que, se a mulher gera a vida, ela é incapaz de matar. Por isso, mulheres são frequentemente colocadas fora do perfil de alguém capaz de cometer crimes. Quando envolvidas na criminalidade, estão sob um duplo delito: o crime cometido e o crime moral (relacionado ao gênero).
Qualquer sistema carcerário fere a dignidade, é como se fizesse parte do castigo. Ela é ferida na medida em que, nos presídios, há mais pessoas do que deveria. O sistema prisional apresenta um domínio forçado, programado para ferir a dignidade.
Lúcia Lamounier Sena
“Se, socialmente, dizemos que a mulher não é afeita ao crime, é muito mais fácil que ela não seja alvo da política. Se estiver na rodoviária carregando droga e um homem também, a polícia vai no homem e não na mulher. Aquela garota ali deve estar indo viajar. Mas, se é um homem, o tratamento é diferente”, analisa Lúcia Sena.
Essa construção social também faz com que, em determinadas situações de crime, a mulher seja uma dimensão estratégica muito importante.
De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, atualmente, o total da população carcerária do Brasil é de 862.343 pessoas, sendo 5,3% são mulheres, ou seja, mais de 43.117.
O sistema prisional opera de tal maneira que a saída, frequentemente, leva os sujeitos a estarem ainda mais envolvidos com a criminalidade, ou muito mais marginalizados do que quando entraram.
Maternidade e dificuldades da recomposição familiar
Ao sair da cadeia, a mulher se encontra em uma sociedade em que os direitos que antes eram negados, agora, praticamente não existem. A falta de políticas públicas é uma realidade que pode ser devastadora em determinados casos, como a maternidade.
Em um levantamento feito pelo Departamento Penitenciário do Estado de Minas Gerais, em 2017, existem apenas cinco estabelecimentos penais com dormitórios adequados para gestantes. Apenas três possuem berçário ou centro de referência materno-infantil. No total, a capacidade é para 81 crianças de até dois anos de idade.
A professora Lúcia Lamounier reforça que a mulher presa no tráfico de drogas deixa de ser a sustentação financeira que cuida dos filhos e, assim, o núcleo familiar empobrece. Sua ausência no lar pode fazer com que os filhos não permaneçam nele.
Além disso, após o cárcere, muitas mulheres não se identificam no próprio lar. Isso também é uma dificuldade para os filhos, visto que a recomposição do núcleo familiar começa a partir deles.
Usualmente, quando o homem é preso, a família aguarda em casa seu retorno. Já a mulher presa perde toda a sua estrutura familiar: marido, casa, filhos… A maternidade é dificultada na medida em que filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Essa situação força a mulher a sair e ter que reconstruir sua vida.
Lúcia Lamounier Sena
Quando a mulher sai com uma “mão na frente e outra atrás”, totalmente desamparada socialmente, o processo para voltar ao núcleo familiar é mais lento.
A primeira porta que se abre é a do crime
Eu quero dar para o meu filho tudo o que eu não consegui dar para os outros, mas ninguém dá um voto de confiança na gente, aí a gente acaba ficando meio desanimada.
Ana, ex-presidiária
Quando uma pessoa fica presa durante muito tempo, também fica descolada dos sistemas- padrão da sociedade. Sem incentivos e oportunidades de aprendizagem e atualização, será extremamente prejudicada e suas chances de retomada da própria vida diminuem.
Por este motivo, muitas mulheres acabam voltando para o crime, por ser este um caminho muito mais fácil e, geralmente, aquele que mantém as portas abertas.
Hoje, Ana tem um emprego e condições de pagar seu aluguel e sustentar o filho mais novo. Mesmo assim, enfrenta dificuldades para sobreviver, considerando o preconceito que vivencia como ex-presidiárias.
A professora Lúcia Lamounier Sena reforça que o Brasil precisa encarar a situação carcerária com responsabilidade e maturidade para que o sistema não sirva como uma escola do crime, que vai provocar um tipo de comportamento nocivo nos encarcerados, situação que os deixa “pior” do que quando entraram.
Segundo ela, o Estado precisa agir como um órgão de conscientização da sociedade, ir para as periferias e possibilitar que os moradores tenham conhecimento e, assim, causar uma mudança na postura social.
É dever do Estado pensar em políticas públicas de recolocação no mercado de trabalho. Muitas mulheres que ficaram presas nunca estiveram no mercado formal. Este processo deve ser iniciado dentro dos presídios, associado a incentivos ao estudo. Essas intervenções podem ser um caminho para que o objetivo da ressocialização seja cumprido”.
Lúcia Lamounier Sena
Mulheres e encarceramento: dica de leitura
O livro Presos Que Menstruam, de Nana Queiroz, aborda a situação de mulheres afetadas pelo sistema carcerário.
A youtuber Bel Rodrigues fez uma análise da obra e conta como diferentes fatos interferiram nas vidas das personagens do livro:
*O nome da entrevistada foi trocado para preservar sua identidade.