Após dois anos de adiamento, Marighella chegou aos cinemas brasileiros emplacando um recorde: em menos de uma semana após a estreia, o filme dirigido por Wagner Moura atraiu cem mil espectadores, sendo o mais visto desde o início da pandemia. Inspirado no livro biográfico “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães, o longa-metragem de duas horas e 35 minutos está em cartaz desde o dia 4 de novembro – exatamente 52 anos após o assassinato do escritor, político e guerrilheiro baiano Carlos Marighella pela Ditadura Militar, em 1969.
Apesar de o filme acumular elogios da crítica especializada e já ter passado por vários festivais internacionais, como o Festival Internacional de Cinema de Berlim e o Festival Internacional de Cinema de Bari, que concedeu o prêmio de melhor ator a Seu Jorge, que interpreta o protagonista, o filme só foi lançado no Brasil neste ano. Os problemas burocráticos com a Ancine que atrasaram em cerca de dois anos a estreia foram considerados pela equipe do filme como um tipo de censura disfarçada, já que a produção trata de temática sensível para o Governo Federal.
Em entrevista ao portal Uol, Wagner Moura relatou que, em agosto de 2019, foram negados os pedidos de redimensionamento e ressarcimento de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual que a produtora, O2 Filmes, utilizou para cobrir a extensão do orçamento. Na ocasião, ele também descreveu a situação como um caso não isolado e afirmou que o lançamento no país foi dificultado por se tratar de uma produção na qual o governo Bolsonaro discorda.
“Usaram a burocracia como o instrumento da censura.” – Silvio Ferreira Júnior (mestre em Design e Comunicação Social)
No entendimento do professor de Produção de Vídeo Mobile, da PUC Minas, Sílvio Ferreira Júnior, que trabalha com o audiovisual desde 2012, ao somarmos o cenário atual com o discurso político do atual governo e a mensagem central do filme, não há como negar que houve algum tipo de censura. Nesse sentido, mesmo com a possibilidade de lançar Marighella nas plataformas de streaming, Wagner Moura optou pela estreia apenas nos cinemas.
O professor crê que essa decisão “vem ao encontro do discurso do próprio filme – resistência”. Caso o diretor renunciasse ao amplo lançamento nos cinemas, ele também estaria renunciando ao seu direito de resistir frente à atitude da Ancine. Ferreira Júnior ainda ressalta que, em um país onde se vê em exibição muitas produções importadas, com histórias hollywoodianas, os filmes nacionais têm uma importância fundamental para a valorização da arte e da história. “Precisamos conhecer a nossa própria história. Quem não conhecia Carlos Marighella, agora conhece. Ou vai conhecer quando for ao cinema”, aposta.
Ataques ao filme
Desde o processo de produção até os eventos de pré-estreia, grupos extremistas e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro vêm se mobilizando contra a obra cinematográfica. Por meio do Internet Movie Database (IMDb), 38 mil votantes atribuíram uma nota abaixo de quatro para o filme, que até o último dia 16 apresentava uma avaliação geral de 6,5. Em nota, a base de dados online sobre cinema, TV, música e jogos informou que detectou uma atividade de votação incomum no título e que, para preservar a confiabilidade de classificação, um cálculo de ponderação alternativo foi aplicado.
Formado em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e organizador do livro “Ditadura na Tela”, Gabriel Amato afirma que a memória hegemônica criada sobre a ditadura pode ser um dos motivos para os ataques. Tal conceito desenvolvido pelo autor Daniel Aarão Reis Filho está no livro “Ditadura militar, esquerdas e sociedade” e contesta a visão que as pessoas possuem sobre o período ditatorial. A obra problematiza a relação entre a sociedade e a ditadura – opressores e oprimidos -, considerando-a mais complexa do que se tem no imaginário dos brasileiros. E baseado em fatos históricos distorcidos, como a do embranquecimento de Carlos Marighella, o longa chega aos cinemas para ressiginificar a representação do personagem principal com a interpretação de um homem negro (Seu Jorge).
Para Amato, essa situação viabiliza informações históricas que foram apagadas ou esquecidas durante os anos e colocam em cheque o uso político da figura do guerrilheiro, tido como vilão por alguns e herói por outros. O historiador, que atualmente leciona no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas (IF Sul de Minas), também destaca o poder que as produções nacionais têm ao fomentar uma formação educacional mais completa.
Na visão dele, “o passado está em diferentes camadas do presente”, e os filmes baseados em fatos reais são um instrumento de conhecimento que podem promover debates e reflexões interessantes no ambiente escolar.
Opinião do espectador
A auxiliar administrativa Maria Clara Martins de Almeida Xavier, 19 anos, relembra durante a entrevista concedida para o Colab que não estudou sobre a figura de Carlos Marighella durante o ensino médio e só tomou conhecimento de quem se tratava quando viu a divulgação na televisão. Devido à presença dos nomes reais nos personagens envolvidos na trama, ela descreveu a experiência de assistir o filme como algo “parecido à leitura de um capítulo de um livro.”
A jovem ainda completa que Marighella é uma das melhores produções nacionais que já assistiu, com muitas cenas fortes, ação e um roteiro potente capaz de gerar empatia pelos personagens. Ela finaliza afirmando que filmes baseados em fatos históricos seriam ótimos aliados nas escolas e que “Os alunos com certeza ficariam mais interessados em saber, eles gostariam de saber a respeito, pesquisariam mais, [assim] como eu tenho certeza que 90% das pessoas que viram o filme fizeram para saber sobre o período da Ditadura Militar”.