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Criminalização do funk: por que o lazer das favelas incomoda?

Foto de Jeferson Delgado - Baile da Penha, no Rio de Janeiro.

Recentemente, o DJ americano Diplo, de 42 anos, concedeu uma entrevista ao G1 onde contou sobre sua paixão pelo funk carioca. Na manchete, uma declaração do artista chama a atenção: “A música aí desses caras no Brasil tem zero regras, e eu amo isso. É um caos total na criação, eu adoro.”

Como em 1942, quando o samba foi enquadrado como crime por vadiagem, o funk hoje sofre as consequências de uma idealização social ilustrada na fala de Diplo: a associação do gênero musical à confusão generalizada. Com base nesse estereótipo constantemente reforçado, no Legislativo há um histórico de projetos de leis (PL) que buscam criminalizar o movimento e suas manifestações culturais.

“(…) Autores e cantores de qualquer estilo musical que tenham conteúdos pejorativos ou ofensivos devem ser responsabilizados criminalmente e punidos pelo Poder Judiciário, tratando-se a presente proposição em reafirmar o espírito maléfico de estilos musicais que incentivam de qualquer forma a propagação de crimes ou situações vexatórias (…)”

Texto do PL 5194/2019, proposto pelo deputado Charlles Thomacelli Evangelista (PSL) e depois retirado pelo próprio autor.

Posteriormente ao PL 5194/2019, a ideia legislativa 65.513/2017 recebeu mais de 40 mil votos favoráveis em consulta pública no site do Senado Federal. No portal e-cidadania qualquer um pode dar uma sugestão de lei. Se ela alcançar 20 mil assinaturas de apoio é analisada e pode ou não se tornar um PL. A ideia, sugerida pelo empresário paulista Marcelo Alonso, defende que os bailes funks são “um recrutamento organizado nas redes sociais por e para atender criminosos, estupradores e pedófilos à prática de crime contra a criança e o menor adolescente ao uso, venda e consumo de álcool e drogas, agenciamento, orgia e exploração sexual, estupro e sexo grupal entre crianças e adolescentes, pornografia, pedofilia, arruaça, sequestro, roubo e etc.” Apesar do grande número de votos favoráveis, para o alívio dos funkeiros, a sugestão foi rejeitada em comissão parlamentar.

Como consequência dessas tentativas de censura, os MC’s muitas vezes não conseguem vivenciar o funk enquanto  trabalho e expressão cultural e acabam sendo responsabilizados pelo crime existente nas comunidades, independentemente dos bailes. A complexidade de se trabalhar em ambiência marcada pela desigualdade e pelo abandono do Estado coloca os artistas como centro de um problema que não é só deles.

Conforme a doutora em comunicação Libny Freire, que tem estudos sobre comunicação e cultura, tendo pesquisado mais especificamente as manifestações do funk e do charme, os ataques a esses estilos musicais e aqueles que os produzem possuem teor elitista e partem de uma visão preconceituosa associada ao “bom gosto”. Segundo ela, o funk não é questionado ou sofre censura apenas devido ao conteúdo das letras. “O preconceito tem classe social e endereço: favela.”

Doutor em ciências sociais, Alexandre Eustáquio Teixeira concorda com a avaliação de Libny, reforçando que até mesmo as abordagens policiais nas comunidades e favelas ocorrem de modo distinto. 

“O CEP no Brasil tem classe e cor, isso já aponta muito o tipo de abordagem que será adotada. Se um endereço for em um aglomerado, a abordagem será muito mais ostensiva, como forma de demonstração de controle, o Estado como negatividade. Se o endereço for o Belvedere [bairro nobre de BH], possivelmente a polícia irá gentilmente pedir para o dono da festa reduzir o som e os vizinhos irão acionar o que incomoda na Justiça, mas tudo de forma bem ‘civilizada’.”

Alexandre.

O caso  do DJ Rennan da Penha, jovem de 25 anos idealizador de um dos maiores bailes funks do Rio de Janeiro, o Baile da Gaiola, chamou a atenção recentemente para a questão levantada pelos pesquisadores. Rennan ficou detido por sete meses e ainda está respondendo à acusação de associação ao tráfico, que, segundo notícia publicada no Jusbrasil (plataforma de  informações jurídicas), foi embasada em depoimento que associa o baile com a venda de drogas dentro da comunidade. 

Outros casos também ganharam notoriedade. Há 11 anos, durante  ocupação policial no Complexo do Alemão, MC Smith e outros MC’s moradores do complexo foram presos sob a acusação de apologia ao crime. Em entrevista ao Mídia Ninja, Wallace Ferreira da Mota, o MC Smith, conta detalhes sobre o episódio, que acabou quinze dias depois, quando ele foi declarado inocente.

João Brasil entrevista MC Smith  │ Websérie Funk Brasil Entrevista 

Em  caso mais recente, no dia 25 de março deste ano, a Polícia Civil de São Paulo realizou uma operação de busca e apreensão na casa de seis Mc’s, entre eles MC Brinquedo, MC Pedrinho e MC Ryan. O fundamento da acusação se repete: associação ao tráfico de drogas. Até a publicação desta reportagem não havia um desfecho da investigação esclarecendo se os artistas envolvidos seriam ou não financiados pelo tráfico. 

De ritmo exótico a som familiar

Paradoxalmente, o funk é muito apreciado em festas privadas da classe média e alta, estereotipado como um ritmo alegre e carregado de sensualidade. Já dentro das favelas, berço dos MC’s, essa sensualidade é por vezes atrelada à  vulgaridade e a alegria, à confusão generalizada. Afinal, por que o lazer e a manifestação cultural dentro das favelas incomoda tanto?  

Teixeira analisa que a estigmatização do gênero tem relação com sua origem: “O estilo é originário de movimentos identitários negros norteamericanos da década de 1960. Essa origem é, em si, marginal.” Ele explica que no Brasil, no final dos anos 1980, o espaço de proliferação do funk esteve demarcado nas periferias cariocas. Essa origem marginal, do ponto de vista territorial e social, somou-se ao tipo de letra e som que eram predominantes na época: ritmos e letras mais violentos, ligados a drogas, tráfico, sexo, que foram considerados agressivos e pouco sofisticados, do ponto de vista de uma compreensão elitizada. 

Teixeira também faz menção à interferência da grande mídia,  que associava os bailes à noção de uma juventude perdida, sem trabalho, sem escola, com sexualidade precoce e que não valorizava elementos da ética e da moral da alta sociedade. Os episódios de arrastão nas praias de Ipanema em 1992, noticiados e relacionados por diversos jornais como uma extensão dos bailes funks, é um exemplo da interferência da mídia na conformação dessa perspectiva.

Capa do jornal O Globo, de março de 1992, atrelava a ocorrência de arrastões aos bailes funk / Reprodução O GLOBO.

Um estudo realizado em 2011 por Danilo Cymrot, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, fez uma análise do episódio. Nas páginas da pesquisa, intitulada “A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica”, há destaque para um trecho da obra “O mundo funk carioca”, do antropólogo Hermano Vianna: “Foi o operador lógico que subitamente transformou o funk exótico em um funk familiar”. O estudo defende que a transformação em algo “familiar” nem sempre é uma domesticação, ou seja, estar familiarizado a algo não significa aceitação ou apreço. 

Quando uma cultura se desprende  de seu território de origem e é apresentada a outros grupos, pode ser julgada a partir de padrões morais diferentes e, consequentemente, provocar estranhamento. Esse deslocamento pode causar uma descaracterização dos valores criativos e, com isso, a representação de uma realidade e um evento festivo pode ser encarada como perversidade. Como no caso da cobertura midiática que apresenta os bailes à elite carioca  por meio de abordagem noticiosa carregada de preconceitos, o que se consolida é a imagem do funk atrelada à confusão e à criminalidade.

Além disso, o recorte racial é indispensável para compreender por que o ritmo  é por vezes considerado  algo sem valor cultural. Nesse sentido, Alexandre destaca que quando desvinculado da favela e consumido por outro público, o gênero passa a representar uma estética momentânea, sem valor político, e por isso ganha a estima da elite. 

Poesia do livro “Mãe quero ser poeta” de Caíque Baron

Funk como resistência

Desde os 15 anos trabalhando com música,  Marcos Paulo Bispo,  conhecido como DJ Nego, hoje com 36 anos, defende que o funk retrata o cotidiano conturbado do artista de periferia, que encontra na arte a possibilidade de espelhar essas experiências presenciadas, mas nem sempre protagonizadas. Hoje ele tem sua própria produtora, que fica na comunidade Vila São Jorge, região Nordeste de BH, onde ele nasceu e cresceu. A “9dade music” já produziu mais de 25 artistas, entre eles mc’s de funk, rap e trap. DJ Nego conta com alegria que já viu o funk salvar vidas. “O que me deu força foi ver as pessoas enxergando nisso uma saída. Quando eu vi meu trabalho sendo um motivo para as pessoas escaparem do crime eu me questionei sobre o porquê dessa resistência com o funk.” 

Ele conta que a repressão não é um ataque às letras provocativas e sim às pessoas. “As autoridades têm que ver que a mesma bagunça aqui também é feita lá (em referência às festas privadas), o problema é que aqui estamos mais vulneráveis, mas estamos tentando viver na disciplina. Lá eles querem curtir a nossa música, mas não dão a cara a tapa para nos defender.”  

Um dos artistas agenciados pela “9dade music” é MC Leon VSJ. Vizinho do produtor, o jovem de 23 anos divide a carreira de MC com a faculdade de direito e conta que o que o impede de viver do funk hoje são as represálias das autoridades e da sociedade civil. Já DJ Nego diz que nada o impede e que, só de possibilitar que os artistas transformem uma vivência dolorosa em arte, a prática já poderia ser considerada bem sucedida. Otimista, ele conta que sempre está aberto a explicar a importância do funk, mas que a diferença está em quem escuta: “A gente tenta explicar, e a pessoa decide se entende ou não. Algumas são mais resistentes, mas não podemos desistir.” 

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