“O rock não é um gênero pro negro, apesar de Jimi Hendrix”. A fala é do cantor Seu Jorge, em entrevista à revista Vice, em 2015. Seu raciocínio era de que o rock não tinha chegado ao subúrbio brasileiro: como homem negro, Seu Jorge tinha tido pouco contato com o gênero.
Essa opinião é corroborada por quem acompanha a indústria musical brasileira, e a mídia especializada. Em uma pesquisa rápida pela internet, termos como “maiores bandas de rock nacional” ou “melhores discos do rock brasileiro” retornam dos mecanismos de busca com respostas que reforçam a hegemonia de bandas formadas por homens brancos e de origem privilegiada no topo das listas. Em aplicativos de música como Spotify, Apple Music e até mesmo o YouTube, essa hegemonia também é perceptível: basta olhar as playlists de rock brasileiro construídas pelas plataformas. Ainda que seja possível encontrar bandas com sonoridades diferentes e de épocas diferentes, a diversidade de gênero, cor e região é pouca.
Rubah, nome artístico de Edgard Leite de Oliveira, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e músico, aponta uma relação entre a cena do rock nacional e a perspectiva social histórica do país. “A manifestação do rock surge de uma forma muito espontânea, só que essa espontaneidade se encontra com a cultura local. O Brasil vinha da tradição de um país escravocrata, de uma desigualdade de classe abissal, então, a desigualdade social no país determinou, em certo ponto, o acesso ao que vinha de fora e o acesso aos bens culturais”, disse. Nesta perspectiva, a posição de Seu Jorge conversa com o quadro histórico do nosso país, mas Rubah complexifica o posicionamento.
Não é que não seja um estilo para negro, é um estilo que não favoreceu comercialmente o negro”.
Rubah
A origem do rock
Para entender as nuances por trás do pensamento de Seu Jorge e de Rubah, é preciso voltar no tempo e lembrar como o rock surgiu e foi moldado até o presente. Embora a origem do gênero esteja diretamente associada a Elvis Presley, a sonoridade já existia antes do grande sucesso do Rei do Rock. A base do rock vem do blues e do R&B (Rhythm and Blues, uma forma mais animada de tocar blues), principalmente da décadas de 1940.
O termo rock nasceu junto do universo do R&B como forma de denominar um som animado e agitado que, mais para frente, ao se misturar com o blues, o jazz e o country, passa a se chamar rock n’ roll. Com um som mais vibrante e ligado à juventude negra que criticava a sociedade das décadas de 1940 e 1950, o gênero passou a sofrer muito preconceito, já que os Estados Unidos enfrentava um período de forte segregação racial. Nomes como Sister Rosetta Tharpe, Ella Fitzgerald, Chuck Berry e Little Richard, por exemplo, foram muito influentes para a formação e transformação do rock, mas que, por vezes, mal são lembrados como representantes do estilo, quando comparados a artistas brancos.
Foi nos anos 1950, justamente com os holofotes virados para Elvis com seu topete e o requebrado, que o rock tomou conta da América e começou a conquistar o mundo. Mas foi só na década seguinte que os garotos de Liverpool transformaram a música para sempre. Considerados até hoje uma das maiores bandas de rock da história, os Beatles foram o maior fenômeno do gênero na música mundial e influenciaram artistas de diversas gerações e categorias musicais, inclusive no Brasil.
Por aqui, o rock teve suas primeiras raízes nos anos 1950 e, a partir da década de 1960, o estilo começou a tomar a forma que conhecemos. A Jovem Guarda foi muito importante para a formação da sonoridade, juntamente de artistas como Rita Lee e os Mutantes, além de Raul Seixas. Na década seguinte, o rock brasileiro se firmou de vez e grupos como Made in Brazil e Vímana, que tem Lulu Santos, Lobão e Ritchie como ex-integrantes, estouraram pelo país.
Na segunda metade da década de 1970 surgiram as correntes punk de Brasília, formada pela classe média, e a de São Paulo, que, ao contrário de todos os movimentos antecessores, foi formada pelos jovens do subúrbio. A partir daí, nos anos 1980, o rock que dominou as diferentes mídias nasceu. Bandas como Titãs, RPM, Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso e Ultraje a Rigor até hoje são lembrados e ocupam a maior parte dos espaços relacionados ao gênero no Brasil.
“Fazer arte no Brasil é classe média”
“Fazer arte no Brasil é classe média, porque você tem acesso a equipamentos e você tem um capital social para divulgar seu trabalho”, comenta o músico, produtor e apresentador Clemente Tadeu, um dos grandes nomes do rock nacional. Considerado um dos precursores do punk no país, atuou por trás de bandas como Restos de Nada, Condutores de Cadáver e Inocentes, na qual atua como guitarrista e vocalista, além de dividir o tempo junto da banda Plebe Rude e sua carreira solo. Além disso, Clemente já participou de filmes, documentários e até hoje integra programas de rádio e TV. Na sua perspectiva, o rock nacional é, por princípio e origem, classe média, mas, por outro lado, foi o movimento punk, formado pela classe trabalhadora, que deu o pontapé para o sucesso do “BRock”, denominação dada pelo jornalista Arthur Dapieve em seu livro “BRock – O rock brasileiro dos anos 80”.
Comercialmente, das capas de revista ao tempo na programação das rádios, as minorias na cena do rock nacional não tiveram tanto espaço ao longo da história. “Toda empresa tem estigma comercial. Ela não está pensando em inclusão, está pensando em pagar as contas no final do mês”, aponta Clemente Tadeu. Porém, ele reforça que programas, como o “Filhos da Pátria”, apresentado por ele na rádio Kiss FM e o “Musikaos”, em que foi diretor-artístico na TV Cultura, têm a função de trazer essas minorias, que circulam no underground, para o mainstream. “Nós, os garimpeiros, somos os caras que abrem espaço e possibilidades para apresentar para o grande público gente que, geralmente, ele não veria por aí”, completou.
A estrutura das rádios e canais de TV comerciais e a forma como operam visando maximizar contratos e lucros, vendendo espaços para publicidade e dando mais visibilidade para o que já é “hit”, acaba alimentando a hegemonia masculina branca. “Essa inclusão é obtida a partir do momento que ela gera algum tipo de lucro. O mercado não é assistente social, ele não tem essa função, a gravadora não é assistente social. Você faz um investimento, você grava, você produz, investe cem mil reais nos caras e aí? Tem que voltar!”, comenta Clemente.
Ele ainda explica, por exemplo, que a rádio Kiss FM, que pertence a um grupo de comunicação privado, tem uma dinâmica diferente de uma emissora pública, como a TV Cultura. O programa “Filhos da Pátria” na Kiss, ainda que tenha espaço para incluir artistas minoritários, depende de um retorno financeiro para continuar no ar, o que altera a forma como o programa é pensado. Já o “Musikaos”, que integrava a grade da TV Cultura no início dos anos 2000, tinha uma liberdade editorial maior, pois faz parte da natureza dessa emissora difundir arte e cultura sem ter o mesmo apelo comercial.
Mídia X Representação
Entre os anos 1970 e 1990 as capas de revistas, cartazes de festivais e programas de TV eram estampados, em sua grande maioria, com as caras brancas e masculinas dos artistas da época. Ao buscar na internet imagens de revistas brasileiras de arte e cultura da época, como Bizz, Flashback e Pop, o retorno será com uma predominância dessas características. Outras publicações especializadas na cena do rock, como é o caso da Rock Brigade, Metal Head e até mesmo a versão nacional da revista estadunidense Rolling Stone, não fugiam desse padrão, e, além disso, davam mais destaque aos artistas estrangeiros.
No artigo “Bob Dylan Lays Down What Really Killed Rock ’n’ Roll” (Bob Dylan estabelece o que realmente matou o rock ‘n’ roll, em tradução livre), o escritor Brent L. Smith usa uma entrevista do cantor Bob Dylan para problematizar as questões raciais da música norte-americana. Baseando-se nesse artigo e em outros materiais, o jornalista Fred Di Giacomo contextualiza o mesmo tema na realidade musical brasileira, em texto que também conta com uma experiência pessoal. Fred defende a tese de que o rock brasileiro, principalmente aquele dos anos 1980, foi “embranquecido”. Para além da crítica, ele mostra como esse estilo “revolucionário”, estava, na verdade, atrasado.
“No Brasil, a partir dos anos 80, ele [o rock] ajudou a nos fazer ter vergonha da nossa cultura, dos nossos cabelos e dos nossos sotaques”.
Fred Di Giacomo
O trecho, escrito por Fred Di Giacomo em seu artigo, expressa uma visão de quem cresceu com a ideia de que o rock era um gênero complexo, moderno e de pessoas intelectuais. Hoje, ele percebe que essa cultura não conversava tanto com a diversidade do país e, em outro trecho, questiona: “Se eu tivesse que escolher entre NXZero e Céu, Tihuana e Racionais ou Jorge Ben e Capital Inicial, nem preciso dizer de que lado ficaria, né?”.
“Está no ar a MTV Brasil!”
A MTV Brasil, canal de televisão aberto inaugurado em 1990, teve grande relevância na absorção da pluralidade estética e sonora do país em sua programação. Principalmente durante a década de 1990, a MTV Brasil foi considerada uma referência para os jovens da época. O canal transmitia clipes do underground ao mainstream e dava espaço para diferentes estilos musicais, como o RAP, que era fortemente marginalizado naquele momento. Além disso, a emissora valorizava artistas nacionais e foi um elemento importante para transformar a cena roqueira do país.
Muitas bandas só tiveram projeção nacional por causa da MTV Brasil, como a. Planet Hemp, idealizada por Skunk e Marcelo D2, dois jovens negros da periferia do Rio de Janeiro que misturavam a sonoridade do RAP e do rock com elementos do samba e da MPB. Os Raimundos, grupo de Brasília que fazia rock pesado combinado com o baião nordestino, também ganharam espaço no canal. Skank, banda mineira que juntou a pegada da música jamaicana com referências da música brasileira, formando um estilo único, chegaram a gravar disco ao vivo em Ouro Preto no selo da MTV. E até mesmo a Nação Zumbi, banda de Recife liderada por Chico Science, aparecia nos TOP 10 de artistas mais tocados, consagrada como uma das responsáveis pela criação do “manguebeat”, movimento que uniu diversos gêneros como o rock, maracatu, música eletrônica e RAP para denunciar as condições de vida das pessoas do estado, a exploração dos manguezais e valorizar a cultura regional.
O músico e historiador Rubah, comenta que, na sua percepção, o rock transitou pela MTV e ganhou profundidade. “Ela tinha programas de auditório, tinha bons jornalistas, ela tinha clipe, ela fazia show ao vivo. Isso fez com que o rock e outros estilos, como o maracatu, acendessem”, disse. Rubah critica o formato da mídia atual, centrado nos players de streaming e nas plataformas de mídia social, que favorecem os “hits de um minuto”, sustentados por uma frase de impacto: “O rock não vai conseguir viver disso”.
Projetos contra-hegemônicos e independentes
Com a força contemporânea dos discursos inclusivos, principalmente mobilizados na internet, projetos independentes surgem para dar visibilidade a artistas contra-hegemônicos do rock nacional. Páginas de Instagram, blogs, canais no YouTube são exemplos de plataformas usadas para esse objetivo. O site Rock Feminino junta produção jornalística e banco de dados com bandas brasileiras formadas por mulheres. Os perfis Afroheadbanger e Preto no Metal divulgam artistas, shows, festivais e movimentos do underground brasileiro pelo Instagram. Apesar desses exemplos, é difícil encontrar produtos midiáticos, da televisão à rádio e streaming, que estejam comprometidos com um pensamento de inclusão e valorização da diversidade cultural do país.
Projeção e reconhecimento
Black Pantera é uma banda mineira formada no ano de 2014, em Uberaba, pelos irmãos Charles da Gama (vocal e guitarra) e Chaene da Gama (baixo), junto do baterista Rodrigo “Pancho”. Naquele ano, eles fizeram parte da programação do Rock in Rio, dividindo o Palco Sunset com o trio de punk recifense Devotos. Ainda que a união dessas bandas gere um impacto na mídia devido à projeção do festival, existe uma discussão sobre sua visibilidade temporária.
Chaene da Gama, ativista e músico baixista da Black Pantera, conta que, ainda que tenham esse destaque, o trabalho para se manter em evidência é difícil. “A estrutura racial é tão forte que a gente teve que ir na gringa três vezes para só então começar a rodar mais no Brasil e ter um nome”, conta. Logo no primeiro ano da banda, com apenas um álbum lançado e tendo tocado apenas na região de Uberaba, foram convidados para se apresentar no festival Afropunk em Paris. Pela falta de condições financeiras, fizeram uma vaquinha online, que não alcançou a meta, mas, mesmo assim, conseguiram completar o valor das despesas do próprio bolso e viajaram para a França. A partir daí, foram mais dois shows internacionais para começarem a ter visibilidade no Brasil.
Essa “estrutura racial”, apontada por Chaene, está relacionada com a origem do rock no Brasil e no mundo, conforme já descrito no início da reportagem. Para o baixista, existe um projeto de apagamento da cultura negra. “O que era do negro era ruim, era do demônio, não era bem visto. Até que os brancos começam a fazer o mesmo e a coisa vira, estoura”, comentou. Pensando nessa perspectiva, a banda se diz “necessária” para combater esse sistema que atinge diferentes camadas, da representação social na música, até a representação social na política.
Chaene da Gama relata que a projeção da Black Pantera fez com que algumas pessoas voltassem a ouvir rock e a se sentirem acolhidas na cena. Segundo ele, alguns fãs chegam dizendo que pararam de ouvir rock pois não tinha ninguém igual a eles, que eles não eram aceitos e que não se encontravam na cena mas que, agora, se sentem representados. “Minha adolescência tá aqui, porque vocês não apareceram vinte anos atrás?”, narra Chaene.