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Como as bets se incorporaram na cultura brasileira

Fenômeno recente no Brasil, as bets tomaram conta da sociedade Brasileira. Com a febre nas apostas, é possível driblar a cultura do vício?

Foto: Joédson Alves / Agência Brasil

Uma nova febre tem tomado conta da internet – e da sociedade brasileira: as apostas. No trabalho, faculdade, no trânsito ou até mesmo em escolas, é possível encontrar alguém na tela do celular fazendo uma “fezinha” ou acreditando em uma promessa de dinheiro fácil. De acordo com dados do Senado, mais de 22 milhões de brasileiros jogaram nas “bets” em setembro de 2024. 

Mas o termo ainda é ambíguo. “Bet” vem do inglês e, em tradução livre, significa “aposta”. Alguns veículos de comunicação e órgãos públicos usam a expressão para falar tanto de apostas esportivas como aquelas dos cassinos. Populares nas roletas e jogos do tipo “tigrinho”. Por mais que se assemelhem, principalmente por envolverem sorte ou azar, alguns de seus problemas são muito distintos. 

Jorge Inácio, de 20 anos, é estudante universitário e se considera um “investidor esportivo”. Natural de Ibiajara, distrito da cidade baiana de Rio Pires, Jorge deixou o centro-sul da Bahia e se mudou para Belo Horizonte para estudar. O universitário vê nas apostas uma fonte de renda  extra –  mas afirma jogar com responsabilidade. Ele conta que sempre foi antenado em marketing digital e conheceu as apostas por amigos e pela internet.

Corintiano fiel, começou apostando no Timão. Após ver conterrâneos em “Grupos VIP”, com dicas de especialistas que vivenciavam esse mercado, viu a oportunidade de tratar as apostas como investimento e começou a lucrar além do entretenimento. Ele explica que, depois de começar a estudar sobre os riscos e como gerir a banca, começou a ver como mais do que uma fezinha. Mas entende que nem todos têm o mesmo preparo.

O jovem vê com bons olhos a regulamentação das bets no Brasil, mas ele defende que a proposta não toca o que entende como principal problema, que são os cassinos: “O mercado está ficando poluído e as apostas esportivas vêm sendo confundidas com o principal problema, que são esses cassinos online. Claro, nas apostas, a maioria das pessoas costuma perder mais do que ganhar, mas não depende só da sorte ou do ‘tigrinho soltar a carta’. Você tem análises, estatísticas por trás”, explicou.

Apesar disso, Jorge acredita que, com a regulamentação, as casas tendem a ficar “mais sérias” e profissionalizadas, o que poderia gerar mais empregos e renda na área. No entanto, ele critica a forma como o governo tratou as propostas no texto. Ele destacou seu receio de que as casas saiam do país com uma regulamentação mal feita ou que possa prejudicar os apostadores, que, supostamente, seriam um dos favorecidos pela iniciativa. Isso aconteceria ao passo que o texto não diferencia as apostas esportivas dos cassinos  online propriamente ditos. 

Além do controle emocional, Jorge falou sobre a “gestão de banca”, como uma forma de limitar seus gastos de forma responsável. Segundo ele, boa parte dos apostadores que tratam o meio como investimento praticam essa gestão. Na maioria das entradas, o investidor disse que aposta geralmente de 0,5% a 1% de um montante específico para apostar. Apesar de encarar o meio como fonte de renda, não se enxerga nos investimentos esportivos de maneira definitiva. No método utilizado, o jovem depende de contas de terceiros, devido às limitações impostas pelas casas de apostas, como mecanismo para brecar o ímpeto de quem ganha sucessivamente.

Por que as bets viciam?

O efeito dopaminérgico é o aumento da sensação de prazer e recompensa que ocorre quando o corpo libera dopamina, um neurotransmissor que atua no sistema nervoso central, influenciando o humor, a atenção, as emoções, a motivação e a disposição. A substância é produzida na glândula adrenal e está relacionada com o desejo de comer, sensação de felicidade ao receber recompensas naturais e motivação para realizar atividades. Quando os níveis de dopamina estão saudáveis, o cérebro tende a buscar e repetir atividades prazerosas. Já níveis baixos podem causar impactos físicos e psicológicos negativos.

As apostas esportivas e bets podem causar um efeito dopaminérgico, provocando sensações de prazer e satisfação, já que a euforia ao apostar e a expectativa de ganhos rápidos ativam as mesmas áreas do cérebro envolvidas no vício em álcool e outras drogas. Essa liberação de dopamina reforça a compulsão, aumentando os níveis de excitação e reduzindo a inibição de decisões arriscadas. O cérebro tende a se acostumar com o nível de dopamina, fazendo o indivíduo buscar mais estímulos para ter a mesma sensação. O vício em apostas esportivas pode ter consequências devastadoras para a saúde financeira, emocional e social, sendo referido como “ludopatia”, tratando-se de uma condição reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) classificada como transtorno do controle de impulsos na CID-11 e Gambling Disorder no DSM-5 (manual diagnóstico e estatístico da psiquiatria).

Em artigo científico publicado este ano em formato pré-print na plataforma Scielo, Ahmed Sameer El Khatib, pesquisador na Universidade Federal de São Paulo, discute os motivos que fazem com que as apostas esportivas entrem no cotidiano das pessoas – e por que elas não gostam de ser taxadas como “viciadas”.

O estudo analisa qual das três variáveis da TCP (Teoria do Comportamento Planejado) influencia mais o comportamento dos jovens universitários: a atitude, a norma subjetiva ou o controle comportamental. A atitude diz respeito à opinião do indivíduo sobre determinada prática, isto é, se ela é vista como positiva ou negativa. A norma subjetiva, por sua vez, envolve a influência social, a pressão que outras pessoas do ciclo de convívio exercem na tomada de decisão. Já o controle comportamental, por fim, é a disponibilidade e facilidade com que uma pessoa pode realizar determinada ação – logo, se ela julgar que tem habilidade, tempo e recursos para tal, maior será a probabilidade de efetivar aquele comportamento.

Realizada com 814 estudantes de quatro universidades diferentes, a pesquisa concluiu que a atitude é o fator preponderante para que o jovem decida apostar. A descoberta é reforçada pelo aumento excessivo de publicidade das bets no Brasil, com peças que usam a imagem de pessoas influentes e jogadores de futebol queridos pelo público para atribuir às apostas sentido de prática inofensiva e lúdica.

O segundo fator mais importante, segundo o estudo, seria a norma subjetiva, que se torna a mais citada em casos de jogadores problemáticos (com grau elevado de vício). Isso mostra que, a partir do momento em que o jovem se cerca de apostadores “casuais” como ele, a tendência é que o vício se espalhe entre a turma, impedindo até quem gostaria de parar de apostar, que passa a temer ser excluído ou visto como “fraco” no grupo de amigos.

O Governo e as apostas

Além de ser um problema de saúde pública, a questão das apostas no Brasil já chegou à política. No Senado, há uma CPI que investiga casos de manipulação de resultados no futebol, instaurada após a Operação Penalidade Máxima, de 2023. Alguns jogadores de futebol chegaram a ser banidos do esporte. Outros sofreram apenas suspensões extensas, como Alef Manga, atacante que jogou pelo Coritiba e já retornou aos gramados em outubro deste ano. 

Mas as bets e o âmbito esportivo não são a única dor de cabeça para os parlamentares. A câmara aprovou em dezembro projeto que regula as bets no país. Além disso, a CPI das Bets também monitora influenciadores que fazem publicidade abusiva destas casas.

Em Minas Gerais, um deputado estadual atua fortemente no assunto, sustentando algumas visões surpreendentes em comparação com o senso comum. Alencar da Silveira Júnior (PDT) é jornalista e foi radialista, entrando na vida política, em 1988, como o vereador mais jovem de Belo Horizonte naquela legislatura. Natural de Sete Lagoas, se elegeu deputado estadual pela primeira vez no pleito de 1994, estando na casa até hoje. O parlamentar fala sobre os problemas dos cassinos no país, mas vê uma oportunidade de arrecadação e defende um modelo similar ao de alguns países da europa. 

Ele cita o caso da Inglaterra, as apostas têm caráter cultural. A terra da rainha conta histórias de apostadores desde os séculos passados, partindo das corridas de cavalo. As casas de apostas se tornaram legais em 1960 e, somente em 2005 houve a criação de uma Comissão de Casas de Apostas no país. Por outro lado, uma regulamentação mal feita pode afastar os investimentos. Jorge, o apostador citado anteriormente, menciona também o caso de Portugal, que perdeu a arrecadação das casas de apostas no país com a regulamentação. Em terras lusitanas, somente 17 casas estão aptas a atuar e, de acordo com dados do Ministério da Fazenda, apenas 40% dos jogos são feitos nestas casas, com o restante em clandestinas. 

Para Alencar, um dos principais problemas das apostas são as questões que envolvem a saúde –  física, mental ou financeira –  de quem joga. Por isso, o deputado defende que é importante tirar o jogo de dentro das casas. Ainda assim, ele acredita que os jogos têm que ser legalizados, sejam eles cassinos, apostas esportivas, bingos e, até mesmo, o “jogo do bicho” – já que “o jogo nacional também tem que ser valorizado”. 

Quanto às restrições, o parlamentar ressalta que o jogo não pode ser de fácil acesso. Durante a entrevista, ele chegou a mostrar à equipe de reportagem o caso de um aplicativo que permite que o jogador que faça sua fezinha no “Bicho” diretamente do celular. Além disso, propõe que os mercados de ações individuais sejam excluídos das casas de apostas. É o caso, por exemplo, no futebol, dos cartões (amarelos e vermelhos), faltas e pênaltis, que facilitariam a manipulação de resultados. Jogadores de renome nacional e internacional, como Lucas Paquetá, do West Ham, Bruno Henrique, do Flamengo, e Luiz Henrique, antes no Bétis da Espanha e agora no Botafogo, são investigados por envolvimento com manipulação de resultados com cartões.

Bets e as implicações econômicas

Recentemente, o Governo Federal entrou em rota de colisão com as casas de apostas, restringindo a quantidade de empresas aptas para atuar no Brasil e buscando regular e conscientizar o setor, sobretudo em relação à veiculação de publicidade. Mesmo assim, não impôs medidas ou fez propostas sobre os cassinos online. 

Alguns apostadores entendem a necessidade de mudanças no meio, até mesmo para garantir a segurança de quem joga. A maioria das casas não têm sede no Brasil, e a imensa maioria está situada em paraísos fiscais da América Central. Com sede em território nacional, a segurança jurídica daria maior conforto aos apostadores (lembram de alguma outra polêmica?), como em casos de não pagamento de valores devidos, por exemplo. Por outro lado, as novas regras ainda não se mostram tão eficientes para diminuir a atuação dos “tigrinhos” e combater efetivamente a manipulação de resultados esportivos. 

A legalização e regulamentação de jogos de azar no Brasil vem sendo tema de debate ao longo das décadas, levantando polêmicas e opiniões divergentes. Desde o fechamento dos cassinos em 1946 até as recentes tentativas de regulamentação das apostas esportivas e jogos online, a trajetória do país reflete os desafios de equilibrar interesses econômicos, sociais e culturais.

Em países onde os jogos de azar são legais, a arrecadação de impostos oriundos dessas atividades costuma ser significativa, permitindo investimentos em áreas essenciais, como saúde e educação. No Brasil, no entanto, a regulamentação ainda é incipiente e carece de um sistema sólido de controle e transparência. Se realizada de forma responsável, a regulamentação pode trazer benefícios econômicos importantes, gerando empregos e aumentando a arrecadação fiscal. É preciso cautela para evitar que as práticas ilegais dominem o setor, como lavagem de dinheiro e exploração de trabalhadores. Fatos que são perceptíveis em outras variações de jogos de azar, como o jogo do bicho e cassinos físicos. 

Além disso, o impacto econômico não se restringe à arrecadação direta. O crescimento das bets, tanto físicas quanto digitais, movimenta outros setores, como publicidade, tecnologia e turismo. No entanto, os problemas sociais podem ofuscar os ganhos. Como o aumento de casos de vício em jogos, que precariza o poder de compra da classe trabalhadora e compromete a qualidade de vida das famílias.

Riscos dos cassinos online

Fernanda Alves Fonseca, jornalista mineira de 28 anos, usou suas redes sociais para dar visibilidade a um relato que reflete um problema crescente no Brasil e no mundo: o vício em cassinos online. Em um testemunho forte e emocionante, Fernanda compartilhou a experiência de sua tia, que foi seduzida pela promessa de prêmios fáceis e diversão proporcionada pelo popular “Jogo do Tigrinho”. O que começou como um passatempo inofensivo acabou se tornando uma armadilha perigosa. O que revela os danos profundos que esse tipo de jogo pode causar na vida das pessoas.

Segundo Fernanda, sua tia era uma mulher cautelosa em relação às finanças e bastante centrada em suas responsabilidades cotidianas. Entretanto, a introdução ao jogo online trouxe muitas mudanças. O “Jogo do Tigrinho”, com seu design atraente, sonoplastia meticulosamente planejada e a constante promessa de vitórias, capturou rapidamente sua atenção. Aos poucos, a brincadeira virou obsessão, levando-a a gastar somas cada vez maiores de dinheiro, na esperança de recuperar perdas anteriores. Esse comportamento, conhecido como “efeito do jogador em perseguição”, é uma característica marcante dos cassinos online, levando os jogadores a continuarem apostando na ilusão de que o próximo giro trará o tão sonhado prêmio.

O fácil acesso e a marginalidade desse tipo de plataforma contribui para que histórias desse tipo se tornem cada vez mais comuns. Um estudo recente do Serasa, revelou que 44% dos endividados brasileiros tentaram aliviar suas dívidas por meio de bets. Essa prática de irresponsabilidade financeira vem gerando um efeito cascata, que faz com que essas pessoas tenham um consumo cada vez mais comprometido e não encontrem mais caminho para sair das dívidas.

Fernanda também destaca o impacto social sofrido por sua tia, que se afastou de familiares e amigos devido à vergonha e ao desespero causados pelas perdas constantes. “Era como se ela estivesse presa em um ciclo interminável, incapaz de sair mesmo sabendo que estava perdendo mais do que ganhando”, relatou a jornalista. 

O fácil acesso aos cassinos online é uma das principais razões para a escalada do problema. Diferentemente dos cassinos físicos, que possuem restrições geográficas e horários de funcionamento, as plataformas digitais estão disponíveis 24 horas por dia. Isso permite que qualquer pessoa com um dispositivo conectado à internet participe. Além disso, muitos desses jogos são projetados para parecer inofensivos, disfarçando-se de aplicativos de entretenimento. Dificultando a percepção dos riscos.

O depoimento de Fernanda, mais do que uma denúncia, é um convite à ação. A crescente popularidade das bets exige atenção redobrada da sociedade para que o entretenimento digital não se transforme em um problema de saúde pública.

Reportagem desenvolvida por Leonardo de Deus, Letícia Lanes, Mateus Monteiro e Thiago Bueno para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
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