Carros inservíveis são veículos que chegaram a um estado de degradação em que não são mais seguros e viáveis para uso. Eles podem estar em condições tão precárias que não podem ser recuperados ou consertados de maneira economicamente acessível. Muitas vezes abandonados ou descartados de forma inadequada, eles ocupam espaços públicos e contribuem para a degradação do ambiente urbano, além de contribuir para a criminalidade.
A falta de reaproveitamento dos carros abandonados para a reciclagem e a dificuldade tributária que o Governo estabeleceu a respeito dos veículos impedem que o país evolua nessa questão. A prefeitura de Belo Horizonte, por exemplo, já recebeu este ano mais de 1.300 pedidos de recolhimento de veículos abandonados nas ruas, segundo a apuração da Rede Globo. Com sucatas acumuladas que não podem ser recuperadas e carros sem função estacionados em locais de intenso trânsito, esses automóveis prejudicam a população.
Desafios ambientais
Em maio deste ano, dois carros abandonados se tornaram foco de dengue no bairro São Geraldo, na Região Leste de Belo Horizonte. Os veículos foram utilizados para o descarte de garrafas de cerveja, água e copos descartáveis. O acúmulo de lixo e a água parada transformaram as carcaças dos veículos em focos para a proliferação do mosquito Aedes aegypti. Contudo, a proliferação de doenças não é o único prejuízo.
De acordo com a engenheira de produção Jacqueline Rutkowski, especialista em reciclagem de resíduos, os carros inservíveis causam um malefício na gestão de energia, no aumento da criminalidade e na mineração de recursos naturais. Isso porque a reciclagem permite a economia de energia na produção de novas mercadorias. Além disso, com a reciclagem, há uma redução da necessidade de extração de recursos naturais não renováveis, como o petróleo e outros minerais. Mas se os carros não são reciclados, nenhum desses benefícios se torna realidade.
Assim, no Brasil, a legislação na questão ambiental ainda precisa ser trabalhada. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), implementada no Governo Lula, em 2010, previa o estímulo à coleta seletiva, o aumento dos índices de aproveitamento dos resíduos recicláveis e a responsabilização dos produtos de lixo, porém ainda não foi completamente concretizada.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 30% dos municípios fazem coleta seletiva e, ainda assim, apenas em parte de seus territórios. O reaproveitamento dos resíduos recicláveis também não foi concretizado. A Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), publicou um relatório em que declara que 39% das 81,8 milhões de toneladas de lixo foram destinados a aterros controlados ou a um dos 3 mil lixões a céu aberto que ainda existem no país.
Potencial da reciclagem de automóveis
Em 2014, iniciou-se em Belo Horizonte um projeto que tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento sustentável pela reciclagem de veículos em final de vida útil. Trata-se do Centro Internacional de Reciclagem Automotiva (Cira), localizado no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).
Para o engenheiro mecânico e professor Daniel Castro, fundador do Cira, o local incentiva a implementação de outros estabelecimentos de reciclagem no país. Com isso, há uma facilitação para o encaminhamento dos inservíveis para reaproveitamento. Ainda assim, segundo ele, o Brasil não valoriza a reciclagem.
Há leilões no Detran e há desmonte de veículos por parte de algumas empresas privadas, porém, o Brasil não valoriza a reciclagem de carros. Também há o caso de as pessoas abandonarem o carro devido ao preço que deve ser pago para dar baixa ou acaba deixando o veículo na garagem ou queima, etc”.
Daniel Castro, professor do CEFET-MG
Barreiras financeiras e uma cidade menos verde
Para além da questão ambiental, há a questão financeira. Como dito por Daniel Castro, as pessoas abandonam o carro devido ao preço que deve ser pago para dar baixa. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 78,5% das famílias brasileiras estão endividadas. Isso impede que o processo de reciclagem de carros seja implementado de forma efetiva no país, além de contribuir para o aumento de carros inservíveis nas ruas.
De acordo com o professor de microeconomia da PUC Minas, Flávio Constantino, a solução seria a renegociação da dívida (inclusive com deságio), permitindo o refinanciamento em condições que atendam o perfil do devedor. Porém, ainda que essa solução seja implementada, não resolveria os problemas principais, como a mudança no imposto veicular. Na Europa, nos EUA e no Japão, o imposto veicular aumenta com a idade do veículo. No Brasil, é ao contrário. Quanto mais velho o carro, mais barato é o imposto. Isso incentiva o uso de carros velhos.
Além disso, no Brasil não existe inspeção veicular com frequência, como acontece na Europa, por exemplo. Isso contribui para automóveis rodando em mau estado de conservação e já no fim de vida útil. Ao chegar nessa situação, o ideal é levar o veículo para empresas de reciclagem automotiva ou de desmontagem credenciadas pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran), porém, para isso, o veículo precisa estar legalizado e esse é um impedimento, segundo o empresário Alexsandro Gonçalves, dono de uma loja de peças usadas e desmonte de veículos.
Muitos pensam que o veículo pode dar baixa de qualquer jeito. Não dá. O Detran faz uma consulta no sistema e o que ele estiver devendo tem que pagar para ele parar de rodar. Então, por conta dessa não flexibilização, as pessoas deixam o carro na rua, porque não tem condição de quitar essas dívidas”.
Alexsandro Gonçalves
5 soluções para o problema dos carros inservíveis
A pauta dos carros abandonados por questão financeira é relativamente antiga no país. Fora do Brasil, a tributação mais elevada sobre veículos mais velhos incentiva a demanda por automóveis mais modernos e em conformidade com a política ambiental. Contudo, segundo o professor Flávio Constantino, essa mudança não será aderida tão facilmente em nosso país.
Recorrer ao financiamento significaria incorrer em taxas de juros mais elevadas que em nações desenvolvidas, que possuem uma renda média bastante superior à renda do brasileiro. A renovação da frota e as restrições ao uso de carros mais velhos poderia ter a contribuição do transporte público, caso esse fosse eficiente”.
Alexsandro Gonçalves
Portanto, é necessário mais do que um financiamento ou incentivar a inspeção veicular anual. É preciso promover mudanças estruturais. A revisão no imposto veicular é um exemplo, porém, não é a solução. Para que ela ocorra, é fundamental que haja uma recuperação do mercado de trabalho, com maior geração de empregos e renda.
O melhor aproveitamento dos materiais dos carros em seu fim de vida útil é outra mudança necessária mas, para isso, é preciso prover a infraestrutura e uma campanha de conscientização para a reciclagem de materiais, com participação ativa das montadoras de veículos.
Com essas mudanças, o país poderia incentivar a reciclagem veicular e, assim, contribuir economica e ambientalmente. É o que destaca a engenheira Jacqueline Rutkowski:
A reciclagem retorna à economia bens que estavam descartados, sem nenhum valor, e geram uma enormidade de postos de trabalho. Há estudos que demonstram que para cada emprego gerado no aterramento de resíduos, a reciclagem pode gerar 20 postos de trabalho na cadeia produtiva. E, no Brasil, assim como em inúmeros países do Sul Global e outros, tem ainda a vantagem de produzir oportunidades de trabalho e renda para uma população vulnerável socialmente, que não teria outra fonte de renda, se não fosse a reciclagem, devido às suas condições de escolaridade e cultura”.
Jacqueline Rutkowski