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Sob ameaça do fim: carroceiros lutam para manter tradições vivas

Em meio ao barulho constante de motores, buzinas e sirenes que reverberam pelas ruas de Belo Horizonte, um ruído específico se destaca: o trotar ritmado dos cascos dos cavalos. Esse som, que ecoa pela cidade desde os tempos de sua construção, marca a presença dos carroceiros no espaço urbano. Mas, hoje, com a antecipação da proibição do uso de veículos movidos por tração animal, essa comunidade tradicional corre o risco de desaparecer.

André Luiz Vieira, de 42 anos, personifica essa tradição. Desde 12 anos, ele segue os passos de seu avô e de seu pai, mantendo viva a tradição de carroceiro que envolve a família há três gerações. Além de André, quatro de seus seis irmãos também encontraram no manejo animal e na vivência com a carroça um meio de subsistência e um modo de vida. Do alto do veículo, André declara o sentimento que nutre por Reno, cavalo adquirido por ele em 2014 e que hoje é seu grande companheiro: “minha relação com o Reno é de paixão! É um cuidado quase que de pai para filho. Eu considero o Reno como um membro da família”.

Ao lado de seu companheiro Reno, Andre trabalha pelas ruas da capital mineira | Foto: Stéfanny Manoelita

Durante a semana, entre 8h e 13h, André e Reno percorrem as ruas da região leste de Belo Horizonte para recolher e transportar entulhos. É essa atividade que garante o sustento do carroceiro, da esposa e do filho de nove anos, que já recebe os ensinamentos do pai.

PL 545/2023

Desde o final de 2023, a atividade dos carroceiros corre riscos. No dia 27 de novembro do ano passado, o prefeito de Belo Horizonte, Fuad Noman, sancionou um projeto de lei que antecipou em cinco anos o fim da circulação de veículos de tração animal na cidade.

O PL (Projeto de Lei) 545/2023, de autoria do vereador Wanderley Porto (PRD) e Janaina Cardoso (União Brasil), alterou a Lei 11.285/2021, segundo a qual as carroças poderiam circular até janeiro de 2031, e determinou a substituição gradativa dos animais de tração por veículos motorizados até 22 de janeiro de 2026. O projeto recebeu 30 votos favoráveis, 9 contrários e 1 abstenção.

As emendas apresentadas por Bruno Pedralva (PT), Cida Falabella (Psol), Iza Lourença (Psol) e Pedro Patrus (PT) durante a tramitação do PL foram rejeitadas pelos parlamentares presentes na 90ª Reunião Ordinária da Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH), realizada em 17 de outubro de 2023. Segundo as propostas de alteração, a proibição só poderia ter efeito quando não houvesse no município de Belo Horizonte pessoa e família que dependessem financeiramente da atividade exercida por veículos de tração animal. Além disso, de acordo com informações do portal da Câmara Municipal, estipulavam que a proibição ficaria condicionada “à consulta prévia, livre e informada à comunidade tradicional carroceira”, prevista nos termos da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Nós não vamos ajudar a cidade se a gente pegar uma comunidade inteira de carroceiros e jogar na rua sem ter como alimentar suas casas.

Iza Lourença, 90ª Reunião Ordinária CMBH, 17/10/2023

A reportagem conversou de forma exclusiva com um dos autores da proposta, o vereador Wanderley Porto. Realizada na Câmara Municipal de Belo Horizonte, a entrevista buscou apurar os dados que embasaram o planejamento de viabilidade do PL. Wanderley, que está em seu primeiro mandato, atua na defesa dos direitos dos animais, mantendo uma postura abolicionista sobre o tema.

Durante a entrevista, o parlamentar não apresentou dados socioeconômicos da comunidade carroceira da capital. Apesar disso, o vereador afirma que a prática de violência contra cavalos é recorrente na cidade. Para ele, essa constatação é “baseada, muitas vezes, nas denúncias que chegam pelo direct do Instagram e no canal do WhatsApp”.

Os carroceiros de Belo Horizonte identificam-se como comunidade tradicional, autorreconhecimento certificado pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (CEPCT-MG). Apesar disso, Wanderley Porto afirmou, durante reunião na CMBH, que a “comunidades de carroceiros não são reconhecidas como uma comunidade histórica”. Questionado sobre a declaração, disse que a tradicionalidade “é uma falácia do movimento dos carroceiros (…) se isso existe, é um argumento para eles questionarem a lei juridicamente e não o fizeram, porque não tem esse embasamento”.

Em relação às alternativas propostas pelo projeto, o parlamentar afirmou que as secretarias de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente estão pensando em formas de capacitação, oficinas e treinamentos para preparar os carroceiros para as mudanças previstas na nova lei. Esse apoio inclui garantia de aposentadoria aos carroceiros que se enquadrem nos critérios definidos pela legislação previdenciária vigente, encaminhamento de crianças para escolas e direcionamento dos carroceiros que estejam aptos para obtenção de uma Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Sobre a destinação dos animais, Wanderley esclareceu que, no momento em que a proibição passar a valer, o poder público não tomará o cavalo dos carroceiros. Os animais apenas não poderão ser acoplados às carroças. O vereador espera que a Prefeitura desenvolva um plano estratégico para incentivar os carroceiros que não estão em condições de cuidar dos animais a realizarem a entrega voluntária dos equinos. Esses animais serão destinados a abrigos de cavalos para que possam ser tratados e, posteriormente, entregues à adoção. Ainda segundo Wanderley, os critérios para adoção proibirão que os animais sejam submetidos a práticas de trabalho, esportivas e montaria, oferecendo uma vida digna e cuidadosa em um ambiente seguro.

Aos carroceiros, o vereador recomenda: “Procurem a Secretaria de Meio Ambiente, pois lá será a ponte para as demais secretarias. A secretaria de educação quer alfabetizar aqueles que são analfabetos, a secretaria de serviço social vai incluir todos no Cadastro Único Social (CadÚnico) para garantir acesso a benefícios sociais”.

A lei está sacramentada e sancionada. Em 26 de janeiro de 2026, isso aqui [em referência a circulação de carroças] não vai poder acontecer na capital, ponto.

Wanderley Porto, vereador de Belo Horizonte (PRD)

A notícia do projeto gerou repercussão negativa entre os carroceiros. Segundo Marcelo Paulo, fundador e ex-presidente da Associação de Carroceiros de Belo Horizonte, a votação ocorreu em sigilo, e os trabalhadores não tiveram oportunidade de lutar a favor de seu modo de subsistência. Para Andre Luiz, descendente de família carroceira, o que fica é o sentimento de mágoa e tristeza.

Foto: Stéfanny Manoelita

Comunidade tradicional carroceira

A relação de cooperação entre humanos e cavalos está presente no mundo há séculos. Como explica Marina Abreu Torres, cientista social e mestre em planejamento urbano, não foram as carroças e os carroceiros que chegaram até Belo Horizonte e outras cidades. Foram as cidades que se formaram a partir dessa aliança histórica entre pessoas e animais de tração.

Marina relembra uma passagem do livro “Belo Horizonte – Memória Histórica e Descritiva”, em que o historiador e jornalista Abílio Barreto narra sua chegada à capital mineira no final do século XIX. Ao sair de Diamantina rumo a Belo Horizonte com a família, Barreto chegou aonde hoje é o bairro São Francisco e de lá viu a cidade sendo construída. Do alto, a vista que encontrou era a de uma profusão de carroças andando de um lado para outro.

Registro fotográfico da construção do Mercado Central mostra a presença de carroças na região central de Belo Horizonte no século XX | Foto: Wilson Baptista

Desde 2018, os carroceiros de Belo Horizonte e Região Metropolitana se reconhecem como comunidade tradicional. Segundo Emmanuel Almada, biólogo e coordenador do Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais, grupo de pesquisa dedicado a questões de sociobiodiversidade urbana da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), os carroceiros são uma categoria etnográfica e, principalmente, política. Eles são, nas palavras do pesquisador, um povo de “afirmação de uma identidade num contexto de luta por direitos” – incluindo o direito ao trabalho, ao modo de vida e ao território, que é a própria cidade.

De acordo com Emmanuel, a palavra “tradicionalidade” costuma evocar, no senso comum, algo do passado, mas a tradicionalidade dos carroceiros não se refere somente a isso. Uma comunidade, como a dos carroceiros se reafirma tradicional na medida em que preserva seu modo de vida e, consequentemente, a forma como ela quer produzir o mundo e, no caso, a cidade.

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Filho de pai de carroceiro, Marcelo Paulo (57), assim como Andre e tantos outros, não apenas exerce uma função ao trabalhar com a carroça, mas afirma-se como parte de uma grande comunidade tradicional.

O trabalho com a carroça é, antes de tudo, um modo de vida. Cada carroceiro possui uma história com seu animal e constrói um jeito único de vivenciar a cidade. Segundo o protocolo da comunidade carroceira de BH, documento que reúne informações sobre a comunidade tradicional carroceira e é parte importante da luta pelo direito de trabalhar e de viver dessa maneira, ser carroceiro é ser livre. O tempo de trabalho depende das demandas financeiras e do bem estar do cavalo e do dono.

Além disso, as carroças não são apenas para o trabalho. São elas que acompanham os carroceiros nas visitas aos amigos e parentes, levam as crianças para a escola e estão presentes nos encontros de cavaleiros, carroceiros e cavalgadas.

No livro “Roça Grande: Diversidade Biocultural das Cidades”, organizado por Emmanuel Almada, o autor destaca o lema da comunidade carroceira: “A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça”.

A Comunidade Carroceira é herdeira de saberes e memórias de tropeiros, de homens e mulheres que sempre viveram na roça. Quando a cidade chegou, as carroças já estavam aqui

(Protocolo comunitário de consulta prévia, livre, informada, de consentimento e veto: Comunidade Tradicional Carroceira de Belo Horizonte e Região Metropolitana)

Acusados de maus tratos, a comunidade carroceira de Belo Horizonte enfrenta há 10 anos perseguições e tentativas de proibir o uso da carroça para o trabalho. Os carroceiros entrevistados para esta reportagem afirmam que hoje não possuem espaço para trabalhar. Marcelo Paulo relata que, quando passa “em uma rua com a carroça carregada, tem um ativista gritando: é maus tratos”. Andre Luiz relata que os xingamentos, principalmente no trânsito, são recorrentes e que agora é preciso enfrentar olhares de ódio.

Eles olham pra gente com desprezo, acham que carroceiro não é gente.

Antônio Arcanjo, carroceiro, 61 anos

Segundo os carroceiros ouvidos para esta reportagem, os animais recebem os devidos cuidados. Entre as falas dos entrevistados, é comum ouvir que os cavalos não são instrumentos de trabalho, mas amigos e companheiros que devem ter o direito a boas condições de vida preservado.

A comunidade tradicional carroceira reconhece que existem casos de maus tratos e que devem ser devidamente fiscalizados e punidos. Mas não são esses casos que definem o estilo de vida dos carroceiros. Marcelo Paulo, que se declara contra os maus tratos, destaca que “se alguém quer trabalhar com cavalos, é preciso criar um animal sadio”. Antônio Arcanjo, carroceiro desde a infância, explica que é necessário conhecer, respeitar a criação e saber o peso que o animal pode carregar.

“Carroceiro é um cara que ama o seu cavalo”, diz Antônio Arcanjo | Foto: Stéfanny Manoelita

No podcast “Identidades urbanas: o perfil dos carroceiros de BH”, a cientista social Marina Abreu Torres define os carroceiros como uma comunidade guerreira e forte e afirma que eles não estão dispostos a “baixar a guarda e dizer que essa luta foi vencida”.

Essa é uma comunidade que preserva os diversos saberes sobre o manejo de carroças e o cuidado com os animais, transmitindo-os de geração em geração. “Para ser carroceiro, não basta ter uma carroça. É preciso aprender a se comunicar com os animais”, informa o protocolo.

O que diz a Defensoria Pública de Minas Gerais?

A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) recomendou à Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) o veto ao PL 545/2023. Segundo a defensora pública Ana Cláudia Storch, que atua na defensoria especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH), o projeto apresenta vícios de inconstitucionalidade formal, isto é, a violação das competências legislativas da União e o princípio da separação dos poderes, e material, que diz respeito à ofensa aos direitos fundamentais, como a proteção do patrimônio histórico e cultural, a liberdade de locomoção, a livre iniciativa e o exercício do trabalho.

Além disso, a DPMG argumenta que a proposta desconsidera o contexto histórico e cultural dos carroceiros de Belo Horizonte, ignorando o modo de vida tradicional que é certificado pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais. O órgão também ressalta que os carroceiros, além de seguir normas de trânsito e ambientais, mantêm uma relação de respeito e cuidado com os animais.

A recomendação de veto enviada pela DPMG à prefeitura de BH também denuncia a ausência de consulta prévia à comunidade carroceira, violando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Política para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, estabelecendo que a proibição absoluta da tração animal pode extinguir uma prática cultural e meio de subsistência de inúmeras famílias, aprofundando as dificuldades socioeconômicas na capital.

Para o  coordenador Estratégico de Tutela Coletiva da DPMG, Paulo César Azevedo, o projeto de lei proibitivo é a última etapa de uma política de desmonte desta comunidade tradicional. “Belo Horizonte já foi um exemplo de cidade que permitia uma convivência harmônica entre carroceiro e cavalo, preservando o bem-estar do animal e regulamentando o uso da carroça. Um aparato legislativo atribuía obrigações de fiscalização à própria prefeitura – deveres que poucas vezes foram cumpridos. Então, por conta dessa omissão e negligência, Belo Horizonte deixou de ser um modelo a ser seguido”, destaca o defensor.

Prefeitura de Belo Horizonte

A equipe de reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Belo Horizonte, que recusou conceder entrevista e informou que não há previsão para falar à imprensa sobre o assunto. Entretanto, a assessoria da PBH enviou uma nota via e-mail, com um posicionamento já divulgado anteriormente, que informa sobre o plano de transição de leis com medidas para minimizar os prováveis prejuízos aos carroceiros, elaborado pela Comissão Intersetorial da PBH. Confira um trecho da nota:

“Há previsão de promoção de cursos na área de transporte, agricultura urbana e tecnologia da informação; apresentação da Política da Economia Popular Solidária, que fomenta a economia com a geração de trabalho e renda atrelada à inclusão social; incentivo à complementação escolar através da Educação de Jovens e Adultos – EJA; fomento às vagas no mercado formal, mediante o incentivo ao cadastro na plataforma GOBH e Sistema Nacional de Emprego – SINE.

[…] destaca-se a inserção, quando necessário, dos carroceiros e suas famílias no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), bem como do Serviço Especializado de Abordagem Social, realizado pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).”

Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a reportagem coletou dados sobre o processo de cadastramento de cavalos e outros animais de tração, realizado em 2022 e 2023. De acordo com a PBH, em parceria com SLU, BHTRANS e Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA) promoveu atividades de emplacamento de carroças, microchipagem e vacinação de equídeos nas Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes (URPVs).

Em relação à vacinação, a Prefeitura informou que foram vacinados 427 animais, sendo 175 em 2022 e 252 em 2023, e esclareceu que anteriormente a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) era responsável por esse processo.

Créditos: Equipe Colab

Ainda segundo a PBH, os animais de tração dividem-se entre equinos (77.9%), asininos (0.9%) e muares (14.5%), além de animais de espécies não identificadas (6.5%).

Créditos: Equipe Colab

A região da capital mineira que mais recebeu cadastros foi a da Pampulha (26.9%), e a URPV com maior número de cadastramento foi a Garças (13.8%). Com menos cadastros, está a região Centro-Sul (1.8%). Já a URPV Aeroporto aparece como a com menor número de cadastros (1.1%) segundo os dados da PBH.

Créditos: Equipe Colab
Créditos: Equipe Colab

Bem-estar animal

Para os carroceiros, os cavalos são companheiros de vida | Foto: Stéfanny Manoelita

O Projeto Carroceiros, resultado de acordo firmado entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) com início em 1997, oferecia atendimento veterinário gratuito ou a preço acessível aos cavalos desses profissionais, como consulta, internação, exames e medicamentos. No entanto, com a extinção desse programa, os carroceiros ficaram desamparados. “A importância desse serviço e importância pra gente, era que a gente tinha uma segurança, que mesmo se o animal adoecesse, eu tinha um lugar para levar. Hoje você não tem mais. Você tem que pagar o absurdo que é uma consulta”, lamenta Marcelo.

*Até o momento da publicação desta reportagem, não foram encontradas informações sobre a data de encerramento do Projeto Carroceiro.

Embora a intenção de proibir o uso de cavalos em carroças vise proteger os animais, as soluções possíveis para esse impasse são objeto de controvérsia. A relação entre carroceiros e cavalos é complexa e muitas vezes subestimada. Durante as entrevistas realizadas para esta reportagem, ficou evidente o vínculo afetivo entre eles, bem como o cuidado dos tutores com os animais. “Eu trabalho com ele, e ele é meu amigo. Dinheiro não é tudo, o tudo na minha vida é esse aqui, o meu companheiro”, explica Antônio.

Além disso, o uso de cavalos em outras atividades sociais, como competições esportivas e segurança pública, não gera os mesmos questionamentos. Segundo Emmanuel, isso levanta questionamentos sobre “como essa pauta ambiental, ela atinge preferencialmente ou exclusivamente um grupo social, nesse caso, os carroceiros. Porque não há nenhuma discussão séria ou levada a cabo para abolição do trabalho dos animais da polícia militar, os haras que estão aí?”.

Marcelo Paulo, fundador e ex-presidente da Associação de Carroceiros de Belo Horizonte, e seu cavalo Branquelo | Foto Stéfanny Manoelita

A Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) afirma atuar para reverter a situação enfrentada pela comunidade dos carroceiros em Belo Horizonte. Em parceria com a comunidade, estão sendo levantados dados e documentos que evidenciem a importância histórica e cultural dessa prática. “A gente está acompanhando e tentará fazer todos os esforços para evitar esse malefício”, destaca Ana Cláudia Storch, defensora pública que atua na defensoria especializada em Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais (DPDH). A servidora ainda ressalta que os efeitos da extinção dos carroceiros não impacta somente a comunidade diretamente envolvida, mas também atinge a cultura como um todo, que é fundamental para a formação sociocultural da identidade do município.

O coordenador Estratégico de Tutela Coletiva da DPMG, Paulo César Azevedo, aponta que a via judicial é uma das alternativas para contestar a proibição imposta. “Gostaríamos de ter tratado isso pela via dialética, participando de uma construção de vias alternativas que permitissem a conformação desses dois interesses: a preservação do bem-estar animal e do patrimônio histórico e cultural”, explica. Diante do confronto entre a legislação local e os parâmetros normativos de ordem nacional e internacional, a Defensoria estuda a possibilidade de uma ação direta de inconstitucionalidade ou uma ação civil pública. O defensor acredita que essas medidas são eficazes para garantir o respeito ao patrimônio cultural, que – segundo o ponto de vista do órgão – vem sendo constantemente ignorado e agredido.

Além das questões jurídicas, a Defensoria Pública busca responsabilizar o município pelos impactos causados à comunidade dos carroceiros. Para isso, está sendo feito um levantamento detalhado sobre os prejuízos que os carroceiros sofreram e quais seriam as possíveis formas de compensação. A defensora Ana Cláudia menciona que é essencial questionar a responsabilidade municipal e encontrar maneiras de reparar os danos impostos a essa comunidade tradicional.

Caso os recursos não sejam aceitos, em 22 de janeiro de 2026, a circulação de carroças nas ruas de Belo Horizonte estará efetivamente proibida, e o modo de vida dessa população, ameaçado. No rastro da modernidade, o destino desta comunidade, parte indissociável da paisagem urbana, parece fadado a desaparecer, levando consigo fragmentos valiosos da história e cultura de uma cidade que, ao avançar, pode acabar esquecendo de suas próprias raízes.

Para saber mais sobre como a comunidade de carroceiros se configura e se relaciona com a cidade de Belo Horizonte, ouça o podcast “Identidades urbanas: o perfil dos carroceiros de BH”.

Reportagem desenvolvida por Edilson Nicolau, Gabrielly Ribeiro e Stéfanny Manoelita para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/1 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
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