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Busca por justiça: Corte Interamericana condena o Brasil pela inércia ao apurar o homicídio do ativista Gabriel Pimenta

 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela inércia ao apurar o assassinato do advogado mineiro Gabriel Sales Pimenta, morto há 40 anos. A sentença do Caso Gabriel Pimenta vs. Brasil foi proferida pela Corte na tarde da última terça-feira (4). O julgamento, iniciado em março deste ano, e a possibilidade de justiça eram aguardados há quatro décadas por familiares, amigos e defensores de direitos humanos. A decisão é um marco histórico para o país e imputa ao Brasil uma série de obrigações voltadas à reparação, mitigação e prevenção de casos semelhantes. O Colab abordou o assunto recentemente, no quinto episódio do ColabCast“Caso Gabriel Pimenta: 40 anos”. O ColabCast é o podcast do Colab, que conta, no formato de storytelling, detalhes da saga por justiça nesse caso.

O processo foi encaminhado à Corte IDH com sede na Costa Rica por não ter sido solucionado no Judiciário brasileiro. Em seu veredito, a Corte compreendeu que o caso “se encontra em uma situação de absoluta impunidade até hoje, devido ao não esclarecimento das circunstâncias da morte de Gabriel Sales Pimenta”. Uma violação ao direito de acesso à Justiça e ao direito à verdade, pois, mesmo com a identificação dos criminosos, testemunhas e provas que comprovam o homicídio, o Brasil foi conivente com a grave negligência dos operadores judiciais no decorrer do processo penal, permitindo a prescrição, fator determinante para a impunidade.

Entenda o caso

O homicídio ocorreu em, 18 de julho de 1982, um domingo, em Marabá, no Sudeste do Pará. Por volta das 22h30, Gabriel Pimenta saía de um bar, o “Bacaba”, onde comemorava a criação do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (então PMDB), quando foi atingido por três tiros à queima roupa. O advogado, que na época tinha 27 anos, havia sido jurado de morte após conseguir cassar uma liminar para reverter o despejo de famílias de trabalhadores rurais. Ele foi executado pouco antes do julgamento do mandado de segurança que iria confirmar ou não aquela liminar. Nenhum dos envolvidos no crime cumpriu pena. Desde então, a família de Gabriel Pimenta, amigos e defensores de direitos humanos buscam por Justiça.

No ano de sua morte, Gabriel atuava como advogado no Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Marabá. Ele era advogado do povo, lutava por grupos periféricos e socialmente excluídos. Na época, o Brasil ainda vivia a ditadura militar, regime marcado pela perda de direitos e liberdades. Um período de opressão, censuras e proibições, que culminaram também em graves violações de direitos humanos no campo, seja com participação direta do Estado, seja pela omissão ou conivência de agentes públicos, como demonstraram a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg).

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Um marco para os Direitos Humanos

A sentença da Corte IDH representa um marco histórico para os defensores de Direito Humanos, pois foi constatado que o Brasil descumpriu a devida diligência de investigar delitos cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos e protegê-las.

Após a decisão, a Corte determinou ao Brasil a criação de um “grupo de trabalho com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras dessa impunidade e elaborar linhas de ação que permitam superá-las.” Além disso, estabelece o prazo máximo de três anos para que o Estado crie e implemente “um protocolo para a investigação dos crimes cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos, que leve em consideração os riscos inerentes ao seu trabalho, e um sistema de indicadores que permita medir a efetividade do protocolo”.

Segundo declaração de Helena Rocha, codiretora do programa para o Brasil e Cone Sul do Centro para a Justiça e o Direito Internacional (Cejil), organização que levou o caso ao Sistema Interamericano juntamente com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) publicou o relato da Cejil, “essa sentença confirma o que vários órgãos internacionais têm afirmando sobre o grave cenário de violência sistemática contra pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil e atribui ao Estado uma responsabilidade agravada de protegê-las e de investigar qualquer ato ou ameaça que venha a ser sofrido por elas”.

Paralelamente, José Batista, advogado da CPT em Marabá declarou: “a sentença da mais alta corte de Direitos Humanos das Américas, condenando o Estado Brasileiro por não proteger, não investigar e nem punir os responsáveis pelo assassinato do advogado Gabriel Pimenta, tem um peso histórico e um valor simbólico muito grande para os camponeses e suas lideranças, que fazem a luta pelo acesso e premência na terra no Brasil. Reforça ainda a luta das entidades de defesa de direitos humanos pela defesa da vida, contra a violência e a impunidade dos crimes que ocorrem no campo”

O irmão de Gabriel e também advogado Rafael Pimenta afirma que “passados quarenta anos do crime perpetrado por representantes do latifúndio, dos madeireiros e dos mineradores, que até hoje dominam o Brasil, a condenação da Corte Interamericana contra o Estado brasilerio foi um marco muito importante na luta pela defesa dos defensores de direitos humanos. Gabriel era um advogado de direitos humanos, um advogado dos trabalhadores sem terra e da população desassistida pelo Estado brasileiro. É uma vitória do Gabriel, é uma vitória dos direitos humanos e é uma vitória do povo brasileiro”.

Quem foi Gabriel Pimenta?

Gabriel nasceu e foi criado em Juiz de Fora. Aos 23 anos se formou na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e, pouco tempo depois, foi aprovado em um concurso do Banco do Brasil, mudando-se para Brasília. Gabriel é descrito por Rafael Pimenta, um de seus irmãos, como um ativista de Direitos Humanos, que, durante a juventude, colocou-se contra a ditadura e a favor da abertura política e anistia daqueles que tinham sido exilados. Ele abandonou o emprego público no Banco do Brasil para trabalhar na Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Conceição do Araguaia, no Pará, representando agricultores e posseiros. Mudou-se na sequência para Marabá, para atuar em outra CPT com a mesma finalidade.

Fotografia de Gabriel Pimenta na Universidade Federal de Juiz de Fora / Arquivo pessoal de Rafael Pimenta

Na região do Pau Seco, no Sudeste do Pará, Gabriel Pimenta atuou em processos de disputa de terras, defendendo os direitos dos trabalhadores rurais. “Você tem que raciocinar que nós estamos lá em 1980 nessa conversa, latifúndio fazia e acontecia, matava e fazia o que queria, como faz hoje ainda, mas não tinha nem notícia dessas coisas. E o Gabriel entra na cidade e vira advogado de posseiro, advogado de trabalhador rural, advogado de motorista de táxi. Vira advogado do povo, dos coletivos populares”, conta Rafael.

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Imagens de Gabriel em assembléia e fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais / Arquivo pessoal de Rafael Pimenta

Segundo o irmão, Gabriel era um dos únicos advogados na região que lutavam por causas populares. Quando estava em Marabá, foi procurado por algumas famílias que estavam sendo colocadas para fora das terras então ocupadas, devido a reivindicação feita por Manoel Cardoso Neto, conhecido como Nelito, e José Pereira da Nóbrega, apelidado de Marinheiro. Na ocasião, os dois fazendeiros conseguiram obter o domínio útil de terras e reintegração de posse. Mas após a dupla conseguir na Justiça uma liminar que permitia a expulsão dos trabalhadores rurais das terras, o jovem advogado conseguiu reverter a determinação judicial, o que teria sido a motivação para sofrer ameaças e ser assassinado.

O crime quase perfeito


Testemunhas relataram a fuga de dois homens em um fusca após o crime. Uma delas era uma menina que presenciou toda a ação na noite daquele domingo. Ela prestou dois depoimentos no inquérito policial, revelando que um fusca parou perto do bar e um dos ocupantes afirmou: “É o alto”. Naquele momento, dois homens saíram do automóvel, um de cada lado, atiraram contra Gabriel e arrancaram com o veículo, fugindo do local. Gabriel atravessava a rua acompanhado de um casal de amigos, Neuzila Cerqueira Guimarães e Edson Rodrigues Guimarães, quando foi atingido pelas costas.

Gabriel morreu, imediatamente, após ser atingido por três tiros, sem chances de receber os primeiros socorros. Ainda segundo a menina, o fusca deu a volta no quarteirão e retornou ao local do crime poucos minutos depois, estacionando mais distante do que anteriormente. Um dos homens saiu do carro, perguntou a pessoas que estavam no local do crime o que tinha acontecido, e alguém respondeu que mataram o advogado. O homem voltou ao carro e fugiu do local.

Os relatos das testemunhas forneciam ainda outros detalhes, como o modelo do veículo, placa, quantas pessoas estavam no carro e quem era o motorista do fusca. A arma do crime também foi apreendida na casa de um dos suspeitos. Além disso, vários depoimentos constam que os acusados ameaçaram matar “aquele advogado” até o dia 4 de agosto de 1982, sendo que antes do ocorrido os pistoleiros rondavam – com o fusca que foi comprado na véspera do assassinato por um dos mandantes – a casa de Gabriel dizendo “a casa do homem é esta”. Isso indica que o crime estava próximo de ser esclarecido e os agentes punidos. Todavia, a justiça não apenas tardaria, como faltaria.

A (in)justiça

A Polícia Civil do município coletou todas as provas do crime em 45 dias, encerrou o inquérito e apurou que havia tido dois mandantes, Manoel Cardoso Neto (Nelito) e José Pereira da Nóbrega (Marinheiro), além de um executor, Crescêncio Oliveira de Souza, conhecido como um dos pistoleiros de Marinheiro. Os três foram indiciados por homicídio qualificado, mas não cumpriram pena. Nelito e Marinheiro foram detidos no dia 20 de julho de 1982 e Crescêncio não foi localizado. Os advogados que os defendiam conseguiram um habeas corpus no Tribunal de Justiça do Pará solicitando a soltura da dupla. Apesar de terem sido presos mais de uma vez, houveram várias tentativas fracassadas de audiências para interrogar os mandantes.

No decorrer do caso, Crescêncio Oliveira e Marinheiro foram mortos, restando apenas Nelito, que iria a júri popular. Na sentença de pronúncia, decidiu-se que existiam indícios de um crime doloso contra a vida e que o acusado poderia ser o culpado. Porém, isso ocorreu 21 anos depois do assassinato, com o reconhecimento do juiz sobre o crime cometido e seus autores. Nelito desapareceu e não compareceu a nenhuma das sessões do Tribunal do Júri que foram marcadas.

Em abril de 2006, o fugitivo foi preso pela Polícia Federal em Pitangui, em uma das fazendas do irmão, o político Newton Cardoso. Em maio do mesmo ano, as câmaras criminais reunidas do Tribunal de Justiça do Pará declararam extinta a possibilidade de puni-lo pelo crime cometido e determinaram o trancamento da ação penal e sua imediata soltura. Desde então, a família do advogado mineiro busca reparação e apoio internacional.

O professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Gabriel Pimenta (Najup), Bruno Stigert, afirma que o grau de parentesco de Nelito com o então deputado federal – que se tornaria governador de Minas Gerais – Newton Cardoso e o fato de o crime ter ocorrido ainda durante a ditadura podem ter influenciado na morosidade do processo e dificuldade de se concretizar a justiça.

A importância do caso na Corte Interamericana

O processo penal do crime prescreveu 25 anos depois, após a perda da punibilidade do mandante, Nelito. A família então propôs uma ação contra o Governo do Estado do Pará pela morosidade e pelo desinteresse em promover justiça. Esse processo teve sentença de primeiro grau procedente, mas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) cassou a sentença dizendo que não via no caso Gabriel Pimenta motivo para dizer que o processo havia sido moroso. Rafael Pimenta, irmão da vítima, acionou então o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) propuseram que ele levasse o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O Cejil e a CPT passaram a advogar para a família em 2006.

No folheto da CIDH, disponível para consulta online, é explicado que “A Comissão examina as petições em que se alegam violações à Convenção Americana, para os Estados que a ratificaram.”. E foi a partir da análise do caso Gabriel Pimenta, que a Comissão permitiu que a ação movida pela família chegasse até a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Reconhecendo em 1998 a Corte como uma jurisdição contenciosa, permitindo assim que o Estado seja julgado, o Brasil já foi condenado por mais de 10 casos encaminhados ao órgão.

A advogada e professora de Direito Raquel Perrota diz que o caso Gabriel Pimenta chegou à Corte para que o Brasil fosse julgado pela sua morosidade e incapacidade de proteção de um advogado e ativista de Direitos Humanos. Segundo ela, foi devido à lentidão do Estado Brasileiro, falta de resolução e impunidade que os familiares de Gabriel conseguiram acessar um sistema internacional que vem se mostrando efetivo ao longo dos anos. Ainda segundo Raquel, uma análise do caso, que não foi resolvido no âmbito do Sistema Judiciário Brasileiro, a partir de elementos históricos, permite a observação da ausência de vontade política e até mesmo algum outro interesse que atuaram para que o caso não tivesse solução no tempo adequado no Brasil. Já o professor Bruno Stigert, diz que o Caso do Gabriel Pimenta tem na sua essência um elemento principal, que além dele exigir do Estado a não repetição da omissão e das fragilidades evidentes, ele cria uma política pública constante e efetiva de proteção dos defensores de Direitos Humanos.

A Corte Interamericana é um dos três tribunais regionais de proteção dos direitos humanos, conjuntamente com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. É uma instituição judicial autônoma, cujo objetivo é aplicar e interpretar a Convenção Americana. Ela exerce uma função contenciosa, que envolve determinar se um Estado compreendeu em responsabilidade internacional a violação de algum dos direitos consagrados na Convenção Americana ou em outros tratados de direitos humanos aplicáveis ao Sistema Interamericano. A Corte também realiza a supervisão de cumprimento de sentenças, exerce também as funções consultiva e de proferir Medidas Provisórias – emitidas pela Corte em casos de extrema gravidade e urgência, quando é necessário evitar danos irreparáveis às pessoas.

Apenas em março deste ano, 2022, ocorreu o início do julgamento do Caso Gabriel Pimenta na Corte Interamericana, ouvindo testemunhas em audiência. A expectativa dos familiares de Gabriel era que até o final deste ano saísse a sentença. Rafael Pimenta, que também é advogado, diz que o julgamento na Corte IDH permite um olhar amplo sobre o caso que agora está sendo analisado por sete juízes da América Latina. A família, até então, esperava que o Estado Brasileiro fosse condenado a responder por danos morais e materiais e que fosse levado a adotar ações de mitigação e não repetição.

Entenda as medidas impostas ao Brasil pela Corte IDH

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A família e os 40 anos de impunidade

Para Rafael Pimenta, o julgamento na Corte Interamericana é o resultado de uma luta por justiça e reparação que perdura por 40 anos. Formado em direito pela UFJF em 1990, oito anos após o assassinato de seu irmão, Rafael descreve a busca de advgados que representassem a família como sua principal batalha. Segundo ele, “as pessoas tinham medo de sofrer o mesmo que o Gabriel, defendendo ele contra proprietários de latifúndios”.

Apesar das idas e vindas do processo, a família se mostrou sempre otimista. Todavia, Rafael lamentou que durante estas quatro décadas não tenha sido implementada política de proteção aos defensores dos direitos humanos no Brasil para evitar perseguições e crimes. Segundo ele, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho deste ano, mortos em uma emboscada no Vale do Javari, Amazonas, poderia ter sido evitada caso políticas públicas de proteção tivessem sido implementadas antes.

Os personagens desta narrativa: conheça quem é quem

Conteúdo produzido por Fernanda Bertollini e Giovanna Minarrini
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