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BH tem mais imóveis vazios do que moradores em ocupações

A ocupação Maria do Arraial, que fica localizada na Rua da Bahia, teve início em 2023

Casa de tijolos na ocupação Novo Paraíso, na parede externa da casa há um cartaz onde se lê: "A ocupação Novo Paraíso não aceita despejo"
Faixa presente na ocupação Novo Paraíso/ Crédito: Gilvander Moreira

Estou há três dias sem comer e dormir. Minha filha pergunta: vão derrubar nossa casa?”.

Inácio Sant’Anna

A frase é de Inácio Sant’Anna, de 33 anos. O gesseiro mora com a filha de apenas sete anos na ocupação Vila Nova Paraíso, na região do Barreiro, em Belo Horizonte. 

No fim de outubro, Inácio recebeu uma visita inesperada. Um oficial de justiça entregou uma ordem de despejo. O gesseiro teria menos de uma semana para deixar a residência e retirar todos os seus pertences. O imóvel onde mora há 12 anos seria demolido em 1° de novembro. “Ele me avisou para sair com menos de uma semana para demolir. Eu nem tirei nada daqui. Vou para onde?”, diz. 

Inácio mora em um terreno que pertence à Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). A estatal tem o plano de retirar ao menos 300 famílias que vivem debaixo das linhas de transmissão de energia na região do Barreiro. Segundo a empresa, as ocupações correm risco, já que estão próximas de equipamentos de alta tensão.

No dia marcado para a demolição, a população das ocupações Vila Nova Paraíso e Vila Bernardete se organizaram para protestar e impedir a destruição da casa de Inácio. A expectativa era criar uma corrente humana em volta do imóvel, mas os responsáveis pela demolição não apareceram. Agora, Inácio convive com a incerteza de quando e se a casa onde vive será destruída. “Eu fico muitos dias fora, porque trabalho no Sul de Minas. Meu medo é eles aproveitarem que não tem ninguém em casa e derrubarem”, desabafa.

Mais de 1,7 mil famílias correm o risco de serem despejadas em BH

Inácio é uma das mais de 100 mil pessoas que moram em imóveis irregulares em Belo Horizonte, de acordo com a prefeitura do município. Sem ter onde morar, a população constrói imóveis de forma precária, sem regulamentação ou infraestrutura adequada, em terrenos de propriedade privada, que estão vazios ou abandonados pela cidade.

Entre os moradores das ocupações da capital mineira, uma parcela convive com o medo de ser retirada da própria casa. A Defensoria Pública de Minas Gerais acompanha o processo de 1.760 famílias que correm o risco de serem despejadas de sete ocupações em BH. São elas: Ocupação Padre Eustáquio, Anita Santos, Santa Catarina, Vila Esperança, Maria, Fábio Alves e Papoula Beatriz.

Início das ocupações em Belo Horizonte

Inaugurada em 1897, Belo Horizonte foi a primeira cidade moderna planejada no Brasil. Porém, antes disso, BH já foi apenas um povoado. Em 1701, o bandeirante paulista João Leite da Silva Ortiz recebeu sesmarias e fundou a Fazenda do Cercado. Em um período de dez anos, famílias se instalaram ao redor da fazenda e formou-se um pequeno arraial, o que nomeou a cidade como Arraial do Curral del-Rei.

Após certo tempo, Belo Horizonte se tornou a nova capital de Minas Gerais, que na época era Ouro Preto. Por isso, a cidade foi projetada para ser moderna e atender ao padrão requisitado para ser a capital do estado. Porém, para que as obras ocorressem da forma planejada, houve o despejo de moradores para que outras construções tomassem o lugar das residências. 

BH tem mais imóveis vazios do que moradores em ocupações irregulares

O direito à moradia é assegurado pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988. O texto constitucional afirma que é de responsabilidade da União, estados e municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. 

Mesmo com esse direito garantido, ainda existem pessoas desabrigadas e em ocupações irregulares devido à falta de medidas públicas eficientes. Isso se comprova na capital mineira através de um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que mostra que o número de imóveis vazios de Belo Horizonte ultrapassa 109 mil domicílios. Número maior do que as 108 mil pessoas que vivem em ocupações irregulares.

Panorama da relação entre imóveis de BH, população desabrigada e moradores de ocupações

Dados obtidos a partir do Censo 2022 IBGE

Na análise da presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), a deputada estadual Andreia de Jesus (PT), as ocupações representam “a única política construída pelo próprio povo para garantir o que está previsto na Constituição, que é o direito à moradia, direito a um teto”.

Para ela, a consolidação dessas moradias ainda cumprem o papel de realizar uma reforma agrária, já que os moradores das habitações irregulares atribuem função social a imóveis que estão parados. “Muitos prédios devem milhões de IPTU (em Belo Horizonte). Então, eles já perderam o patrimônio e deveriam estar na mão da prefeitura para dar função social para essas áreas, mas o que a gente vê é uma negligência do Poder Público”, diz.

A prefeitura de BH tem programas sociais como a Política Municipal de Habitação (PMH), que foi iniciada em 1993 e é voltada para o atendimento da população de baixa renda. Os recursos dessa organização também são aplicados em aquisições de imóveis destinados a programas habitacionais de interesse social. Porém, essa medida ainda é insuficiente, já que Belo Horizonte ainda tem ocupações irregulares. 

Por parte do Governo Federal, Andreia de Jesus lembra que a única política voltada para o campo do déficit habitacional no país é o programa Minha Casa Minha Vida, criado em março de 2009, pelo governo Lula (PT). “Nos últimos anos, a única política que tinha era o Minha Casa e Minha Vida, que é uma política do Governo Federal, mas as prefeituras e o Governo do Estado totalmente abandonaram a política, e a gente tem visto o contrário”, conta.

Mapa das ocupações

Ocupação Maria do Arraial

Com fortes ambições e desejo de moradia digna, 250 famílias se juntaram para criar a Ocupação Maria do Arraial, que transformou um prédio vazio, localizado no coração da capital mineira, em seu lar. A ação, que aconteceu na madrugada do dia 28 de julho de 2023, foi organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que luta pela reforma urbana e pelo direito de morar dignamente. 

Localizado na Rua da Bahia, 1065, o prédio ocupado funcionava como uma antiga escola do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), que teria sido fechada por falta de acessibilidade, em 2021. Segundo o Senac, o imóvel foi alvo de “ocupação irregular”, e o prédio não estaria abandonado, mas passando por um momento de readequação. Ainda de acordo com a instituição, o imóvel seria reaberto para atender gratuitamente turmas do Programa Jovem Aprendiz. 

Quem foi Maria do Arraial?

Quem dá nome à ocupação é Maria do Arraial, — também conhecida pejorativamente como “Maria Papuda”, por conta do bócio, aumento no volume da tireoide — uma mulher negra escravizada que viveu durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, no Arraial Curral Del Rey, atual Belo Horizonte. Durante a construção e planejamento da cidade, iniciou-se o processo de desapropriação dos moradores, pela Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC).

Maria do Arraial e seu rancho, onde atualmente fica o Palácio da Liberdade/ Crédito: Reprodução

O embate entre Maria e o CCNC começou depois de ela se opor à destruição de sua casa, o que dificultou o processo para a Comissão. Entretanto, mesmo resistindo, seu rancho foi demolido para dar lugar à construção do Palácio da Liberdade, antigo local de trabalho dos governadores de Minas Gerais.

Hoje, a ocupação com o nome da militante, na rua da Bahia, abriga cerca de 200 famílias. Lamarca, professora de geografia de 23 anos, é uma das moradoras, que pediu para ser identificada apenas com o sobrenome. Ela faz parte do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e do partido político Unidade Popular, que está por trás da ocupação. Aos sábados, ela e os outros integrantes do movimento se reúnem, assim como os demais moradores do prédio. Ela explica a finalidade das assembleias: “agregar uma formação política às famílias, trazer um panorama do que é a reforma urbana, do porquê que a gente ocupa, porque que a gente faz essa luta?”.

Apesar de o Senac dizer que o prédio apenas passaria por reparos referentes à acessibilidade, a professora conta que os moradores encontraram o prédio em situação precária. No prédio de dez andares, o elevador não funciona, e goteiras estão espalhadas por todos os andares. Foram os moradores que ligaram a energia do imóvel e a água.

Moradores podem ser despejados a qualquer momento

Apesar da força de vontade e da resistência, Lamarca diz que o despejo é algo que pode acontecer a qualquer momento. Segundo ela, os moradores até ficam receosos, mas já estão acostumados com a possibilidade de se verem sem um lugar para morar, já que, antes de ir para o prédio do centro, eles também moravam em moradias irregulares ou não tinham nem mesmo onde morar. “O prédio pertence a uma instituição privada, então, a ameaça de despejo existe e ela é presente, mas tal qual a nossa organização para resistir”, conta.

Além disso, a localização do imóvel também é favorável, já que o local fica no coração da cidade. “A gente fez essa ocupação a um quarteirão de um batalhão da polícia, aqui, à nossa esquerda, a um quarteirão, e outro batalhão a um outro quarteirão para cima. A gente tá cercado. A prefeitura está aqui, mas como é que vai ser esse processo de despejo na porta da prefeitura? A gente desce com as famílias e a gente ocupa lá, por exemplo”, justifica.

Apesar do medo, os integrantes do MLB e da UP se esforçam para mitigar o sentimento e alimentar a união e a consciência política. “Não é uma atmosfera de amedrontamento. A gente não cria isso, né? Inclusive, a gente cria o fortalecimento dessa consciência: de que a possibilidade de despejo é inerente ao processo da ocupação”, explica Lamarca. “A gente não tem esse tempo, a gente não tem essa disponibilidade, essa energia para depender do medo”, completa.

Ocupação arrecada doações para sobreviver

Cartaz do bazar da ocupação Maria do Arraial/ Crédito: Paula Arantes

O dinheiro investido na manutenção do prédio e alimentação coletiva vem de ajuda voluntária. Os moradores tiveram a ideia de criar um brechó, em que são vendidos itens a R$5,00. Além disso, as pessoas também podem deixar doações no prédio. “É uma forma de garantir a nossa sustentação. A gente não recebe incentivo, nem apoio financeiro de nenhuma instituição. A gente conta mesmo com a colaboração voluntária”, diz a ativista.

Em negociação com o Senac, a última solução apresentada pela entidade foi o fornecimento de cestas básicas, cursos e auxílio aluguel para os moradores da ocupação Maria do Arraial, mas isso não foi o suficiente para mudar o rumo deles. 

“A gente está discutindo aqui sobre famílias em extrema situação de vulnerabilidade, famílias que estão dando graças a Deus por ter um teto sobre suas cabeças, um madeirite ao redor de uma cama para poder dormir. Isso é um Panorama de miséria do nosso país, é ensurdecedor, muito escandaloso. Então a gente não está negociando com o Senac cesta básica”, pontua.

Crédito: Reprodução

A gente não quer comer amanhã só, a gente quer produzir condições de alimentação e moradia permanentes”.

Lamarca, moradora da ocupação Maria do Arraial

Veja a galeria de arte com fotos da ocupação Maria do Arraial

Ocupação Professor Fábio Alves

A ocupação tem esse nome em homenagem ao professor Fábio Alves dos Santos, que ministrava na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor no curso de direito, ele se dedicou ao Serviço de Assistência Judiciária (SAJ), atuando, principalmente, em causas populares. Fábio Alves ajudava juridicamente as pessoas que fazem parte do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), contribuindo não somente com a ocupação batizada em sua homenagem, mas todas em que o movimento atua.

A ocupação fica no bairro Marilândia, na Região do Barreiro, em BH. São mais de 500 famílias morando lá. Em uma audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos, Igualdade Racial e Direitos do Consumidor da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), Flávia Silvestre, do movimento Luta Popular, disse que a iniciativa veio depois de moradores da região se queixarem da falta de moradia e enxergarem no terreno abandonado há mais de 50 anos a solução para o dilema.

Em fevereiro de 2018, uma decisão judicial autorizou a reintegração de posse, que tem o objetivo de restituir a posse do imóvel por parte de seu dono. Depois disso, Defensoria Pública suspendeu o mandado de despejo. Mas, em 2022, a Justiça concedeu a reintegração de posse mais uma vez. Dessa vez, uma decisão do STJ suspendeu novamente as ações de reintegração de posse até o dia 31 de outubro do ano passado. 

Atualmente, os moradores ainda temem serem despejados, mas seguem resistindo e acompanhando o desenrolar do caso na justiça.

Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito

A frase estampa a porta da ocupação Maria do Arraial, no coração da cidade. Quem fez a arte foi o pichador e grafiteiro que assina como Fosko pelas ruas de Belo Horizonte e região metropolitana. Ele mora na ocupação Professor Fábio Alves e conta que não sabe quem é o autor da frase, mas que ela sempre esteve presente na sua vida. 

Eles (os integrantes do movimento Luta Popular) sempre falam que ‘enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito’. Quem exatamente inventou, eu não sei, mas eu sei que eu gravei ela”

Fosko, morador da ocupação Professor Fábio Alves
Pixação feita por Fosko na porta da ocupação Maria do Arraial/ Crédito: Paula Arantes

Ele conta que além de ilustrar as ocupações, o grupo de pichadores do qual faz parte também atua de outras formas dentro das ocupações. Entre as ações, ele lista: “ajudar a ligar uma água, uma energia, cortar o cabelo do pessoal na comunidade, faço pintura, ajudo a descarregar caminhão quando chega doações”.

Fosko mora na ocupação desde o seu início, e conta que junto com a Flávia Silvestre e outros moradores do local, ele participou da fundação do movimento Luta Popular.  A associação de militantes é responsável por evitar, até hoje, o despejo dos moradores da ocupação. 

Por meio do movimento, eles conseguem auxílio jurídico e até de profissionais da área de infraestrutura, como engenheiros. “Tem engenheiro, tem o pessoal da infraestrutura, tem advogado, tem uma equipe que está por dentro do assunto. Quando sai alguma ata, ou alguma coisa assim, aí reúne o pessoal que tem mais conhecimento do assunto que nós”, diz o pichador.

Protestos fortalecem o movimento

Assinatura de Fosko em uma pixação/ Crédito: Paula Arantes

Além disso, o artista explica que para participar do movimento Luta Popular, “não precisa de carteirinha, não precisa de nada, você só precisa participar do movimento”.  Ele explica que uma das formas de atuação é aderir aos protestos, que aconteceram, por exemplo, quando foi dada a ordem de reintegração de posse, em agosto de 2020. “Quando tem protesto a gente vai junto, junta a nossa galera, os pichadores, as outras pessoas e, assim, o movimento fica mais forte”, ressalta. 

Quanto à sua arte, Fosko explica que ele não se limita a um só estilo de pintura, e se denomina como um adepto ao “freestyle”, que pode ser traduzido do inglês para o português como “estilo livre”. “Tudo que é pintura eu faço”, explica. Na ocupação Professor Fábio Alves, ele diz que “lá (na ocupação) tem pichação, tem graffiti, grapixo…”, enumera. Ele conta que ilustrou os muros do local onde mora, inclusive, com uma arte que carrega o nome da ocupação, que virou ponto para tirar fotos na comunidade.

Ocupações irregulares

As ocupações irregulares ocorrem quando pessoas se apropriam de áreas desocupadas, sejam elas públicas ou privadas, sem autorização legal. Normalmente, esse tipo de ocupação é um fenômeno organizado por um grupo de famílias que buscam solucionar o problema da falta de moradia ou da insuficiência de recursos para alugar um imóvel. 

Ocupações populares são comumente conhecidas como invasões. Invadir um imóvel particular é crime no Brasil, de acordo com o inciso II do artigo 161 do Código Penal. Além disso, o artigo 20 da Lei Federal nº 4.947, estabelece que invadir terras da União, dos Estados e dos Municípios, com intenção de ocupação, também é crime. Porém, é importante ressaltar a diferença entre ocupação e invasão.

Ocupação x Invasão

O Código Penal configura invasão como “o ato de invadir, com violência ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio para o fim de esbulho possessório”. Isso significa tomar posse de um bem de forma ilegal, ou seja, sem a devida autorização. 

O nome “ocupação” é utilizado quando famílias procuram uma propriedade ociosa para se instalarem. Tecnicamente, ocupar um imóvel é também invadi-lo, mas a diferença é que as ocupações populares podem se tornar legítimas e legais quando possuem alguns requisitos. Um desses requisitos está relacionado à “propriedade ociosa”, que é aquela que está desocupada, inativa ou subutilizada, sem cumprir sua função social.

A função social do imóvel

O artigo 182 da Constituição Federal aborda sobre a desapropriação urbanística e legitima a desapropriação por descumprimento da função social de uma propriedade urbana, caso o imóvel não possua mais sua função social.

Além disso, existe a usucapião, prevista no artigo 183 da Constituição Federal e no artigo 1.240 do Código Civil. A prática consiste no “reconhecimento do direito ao domínio em favor da pessoa que, de forma pacífica e ininterrupta, tenha como sua área de até 250 metros quadrados, por cinco anos, sem oposição, utilizando-a para moradia própria ou de sua família, desde que não seja proprietária de outro imóvel urbano ou rural”, de acordo com informações do Supremo Tribunal Federal (STJ).

Reportagem desenvolvida por Eduarda Abreu, Fernanda Rodrigues, Larissa Cavalcante e Paula Arantes na disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, no semestre 2023/2, sob a supervisão da professora Verônica Soares da Costa.
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