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Bailarinos mostram que a arte não tem gênero

O balé é um estilo de dança de origem italiana, que exige muita elegância e postura. Por conta disso, a presença de corpos masculinos na trajetória da dança, até os dias atuais, é repleta de desafios e preconceitos, que geralmente associam a prática à orientação sexual dos bailarinos. Apesar dessa situação, homens apaixonados pela dança desafiam os estereótipos ao mostrar que a arte não tem gênero.

Apesar do protagonismo masculino nas origens do balé (ver box), devido também ao caráter patriarcal das sociedades, os bailarinos viraram alvo de preconceito. Com referências machistas e sexistas, a criação de estereótipos sobre a masculinidade, a partir de um padrão, imposto pela sociedade, do homem “durão”, qualquer atividade que exija sensibilidade ou delicadeza passou a ser vista como destinada às mulheres e inviável aos homens. Por conta da elegância, delicadeza e postura exigida pela dança, a presença do homem ainda gera estereótipos que associam a prática à orientação sexual.

A jornalista, mestra em comunicação e doutoranda em meios e processos audiovisuais Juliana Gusman explica que a construção de certas normas de gênero se deram a partir de “tecnologias de gênero”, que são institucionais, como escola, família, religião e, até mesmo, a mídia. 

Conforme Juliana, que estuda as representações de gênero e foi bailarina por 21 anos, essas tecnologias “vão ser usadas para produzir certos corpos como mulheres e certos corpos como homens, de preferência, numa construção que siga certa coerência entre sexo, gênero, sexualidade e desejo, como coloca Judith Butler”. Dessa forma, o balé está inserido dentro dessa cultura dinâmica de produção de gêneros que gera estereótipos. 

Com isso, o preconceito é um reflexo do binarismo de gênero presente dentro da dança, que tem papéis de homens e mulheres bem delimitados. Se um corpo masculino se apropriar de práticas artísticas que requerem qualidades, culturalmente vinculadas ao feminino, como a delicadeza, beleza e suavidade, significa, à luz do pensamento estereotipado, que ele vai se feminilizar. “Tudo que a nossa sociedade busca evitar é, justamente, esse intercâmbio de papéis de gênero: as mulheres têm que se portar como mulheres e os homens como homens”, critica Juliana.

Como reflexo disso, o artesão e aluno de balé Walisom Gomes conta que o preconceito com a presença do homem na dança ainda está enraizado na sociedade e que, por conta disso, já se sentiu afetado de várias formas. “Já atrapalhou muito minha autoestima, meu sentimento de querer continuar e minha força: eu me senti paralisado em alguns momentos e sem voz para poder fazer acontecer”, relata o dançarino.

Capaz de se manifestar de diversas formas, esse preconceito pode levar ao bullying, ao isolamento e, até mesmo, à violência. Proprietária do núcleo de dança Corpus e professora de balé, Raphaela Milward diz que já teve bailarinos que sofreram  preconceito e optaram por desistir da prática.

A desaprovação dos pais e familiares também é frequente e pode prejudicar o dançarino. Raphaela lembra de um aluno talentoso que não podia dançar enquanto criança, porque o pai não aceitava. “Só quando ele ficou mais velho e mais independente que pôde começar a dançar”, conta a empresária.

Juliana Gusman reflete sobre a carga do balé ser vista como atividade quase compulsória para meninas, desde crianças. Existe uma dicotomia em que “quase todas as meninas são colocadas numa escola de balé, enquanto os meninos vão para uma escolinha de futebol”, comenta. Isso reflete na prática, pois, “se um homem pratica dança, ele estará corrompendo sua masculinidade dominante, viril e normativa”, completa. 

Apesar de haver menos homens praticando balé do que mulheres, a presença deles é valorizada, tanto por ser uma mão-de-obra escassa quanto pelos papéis que podem desempenhar. Ainda que a presença masculina seja essencial, a professora de Walisom, Raquel Miranda, conta que os homens não costumam procurar muito pela prática do balé e que tem, atualmente, apenas quatro alunos em sua escola, Spiral Escola de Dança, localizada em Ribeirão das Neves. “A procura do balé pelo público masculino sempre foi pequena ou nula”, aponta Raquel.

Do preconceito à paixão 

Bailarinos João e Augusto -Foto: Isabella Arcuri/Divulgação

Apesar do preconceito, muitos homens se apaixonam pelo balé e decidem praticar e atuar profissionalmente na área. É o caso de Marcelo Misailidis, que já foi primeiro bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e, hoje, continua como professor, além de ser coreógrafo da comissão de frente da Beija Flor de Nilópolis.

O bailarino conta que seu primeiro contato com a dança foi na adolescência, por meio de sua primeira namorada, que fazia aulas de balé. Marcelo explica que o interesse prévio pelas artes eruditas, somado à proximidade com a escola de dança e com a música clássica, despertou uma atmosfera de romantismo.

Essa primeira experiência com o balé estimulou o interesse de Misailidis e possibilitou sua busca pela prática. “A relação com essa minha primeira namorada teve uma influência muito forte, eu fui ganhando mais confiança e acabei começando a estudar balé quando tinha mais ou menos 17 anos”, relata o coreógrafo. A partir desse contato e do apoio que sempre teve de sua família, o bailarino e coreógrafo construiu sua carreira.

Bailarino Marcelo Misailidis em performance – Foto: Laura Misailidis/Divulgação

Já Walisom conta que, apesar das dificuldades e do preconceito sofrido, a paixão pela arte sempre esteve presente em sua vida. Por meio de um campeonato de dança no ensino médio, o jovem descobriu o balé como prática inspiradora. “O que me inspira no balé é a beleza dos movimentos, o domínio que você precisa ter, o quanto você precisa conhecer o seu corpo, o trabalho das pessoas, a dedicação e a energia”, comenta. 

O artesão conta que sua memória favorita é de quando realizou o sonho de participar de um balé de repertório, interpretando Franz, personagem principal de Coppélia. Atualmente, o bailarino continua vivendo a paixão por meio do “Entre homens e poesias”, projeto criado por sua professora Raquel e aprovado pela lei de emergência cultural Aldir Blanc, que conta com apresentações de sete artistas homens.

Apesar dos obstáculos enfrentados, na visão dos artistas, a dança auxilia a superar os pré-julgamentos. Misailidis conta que, pelo contato com o balé desde jovem, não teve dúvidas ao escolher a profissão: “estar perto daquela atmosfera erudita, trabalhar o corpo e fazer atividades físicas são coisas que eu sempre gostei, então a escolha não apresentava nenhum problema”, comenta.

Para o coreógrafo, as barreiras enfrentadas pelos alunos devem ser vistas como uma escalada que vai ajudar no desenvolvimento. O bailarino explica que “isso faz com que o profissional precise superar essa situação para alcançar um novo patamar”, e completa: “As dificuldades e esses obstáculos têm que ser vistos como grandes oportunidades de desenvolvimento”.

A superação também se mostrou presente na vida de Walisom, que, apesar das dificuldades, hoje consegue lidar melhor com os questionamentos sociais, e sem medo. “Esse preconceito já me atrapalhou muito, mas hoje eu consigo fazer acontecer, consigo correr atrás. Eu tento trazer esse sentimento do preconceito, como isso me afetou, e [ver] o que eu aprendi com isso”, relata o jovem.

Raquel diz que sempre busca orientar seus alunos a seguirem em frente, independentemente da opinião dos outros. “Precisamos crescer muito enquanto sociedade para deixarmos o preconceito de lado. A dança é uma atividade para todos os corpos”, defende a professora.

Para que as mudanças sejam concretizadas, segundo Gusman, é necessário fazer um questionamento das atribuições dominantes de gênero e desobstruir o caminho de possibilidades para todos os corpos. “A gente tem que fazer esse trabalho muito coletivo de tensionar esses papéis de gênero legitimados e, a partir daí, muitas oportunidades podem se abrir, inclusive no mundo do balé”, menciona a jornalista.

Matéria produzida pela aluna de jornalismo da PUC Minas Letícia Anacleto.
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