A Agência Nacional de Cinema (Ancine) disponibilizou em seu site, em maio de 2020, uma análise sobre a influência da obrigatoriedade legal da meia-entrada no mercado exibidor brasileiro de cinema. O documento contém dados e argumentos que sustentam o pedido da reformulação da lei que garante o desconto na compra dos ingressos de cinema, ou o fim deste benefício para acesso às salas de cinema.
Para a realização da análise foram comparados dados do Censo Demográfico de 2010, usando informações referentes à renda, escolaridade e faixa etária dos brasileiros, e dados da pesquisa “Cultura nas Capitais”, realizada em 2017 pelo Ministério do Turismo e Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural. A pesquisa também utilizou informações do Sistema de Controle de Bilheteria (SBC) que coleta informações sobre as salas de cinema brasileiras.
Além do documento, a Agência também realizou uma consulta pública, para saber as considerações da sociedade brasileira sobre o direito. A consulta teve início em 28 de maio, com previsão de término em 13 de julho, mas foi prorrogada por mais trinta dias, terminando na quinta-feira, 13 de agosto.
Dados e justificativas
Uma das principais justificativas defendidas pela Ancine é a de que os ingressos com valor pela metade superam em quase 20% as vendas dos ingressos com valor inteiro. O relatório mostra que em 2019, 81,7% dos ingressos de cinema foram comercializados através do direito à meia-entrada.
Com as vendas de ingressos pela metade do valor superando as vendas dos ingressos de valor inteiro, a Ancine alega que as exibidoras de filmes têm aumentado os custos dos bilhetes como forma de compensar o desconto previsto por lei.
Outra justificativa apontada no relatório é a de que a lei não é fator determinante para que as pessoas de classes sociais mais vulneráveis tenham acesso às salas de cinema. A pesquisa aponta que 28,5% dos brasileiros se encaixam nas classes “D” e “E” e revela que somente 17,3% dessas pessoas compõem o público dos cinemas.
Ainda de acordo com a Ancine, a maioria das pessoas pertencentes às classes sociais mais vulneráveis não se enquadra nos pré-requisitos necessários, como ser estudante, idoso ou pessoa com deficiência, para ter o direito a meia-entrada. Consequentemente, a parcela da população que mais precisa desse benefício quase não o utiliza.
Diferenças complexas
O debate sobre a manutenção ou não da lei pode ser apenas a ponta de um iceberg, considerando que a lei federal da meia-entrada não é a única em todo o território nacional a assegurar o direito de pagar a metade do valor de um ingresso.
Dos 26 estados brasileiros, 14 mais o Distrito Federal têm leis próprias que conferem 50% de desconto nas compras de bilhetes. Todos têm normas vigentes de meia-entrada muito antes da aprovação, em 2013, e regulamentação, em 2015, da lei federal.
Além da lei federal e das leis estaduais, cerca de 20 cidades pelo Brasil afora também contam com suas próprias leis que determinam quais grupos têm direito ao desconto dentro do município.
Apesar da ampla gama de leis, nem todas oferecem o benefício para os mesmos grupos que compõem a sociedade – a exemplo de Pernambuco, cuja lei de meia-entrada 15.724/2016 garante que pessoas com câncer – e acompanhante – paguem metade do preço do ingresso em eventos culturais.
Em nenhum outro estado o grupo de pessoas diagnosticadas com câncer tem o direito de pagar meia-entrada. Isso mostra que existem particularidades entre as leis estaduais e municipais com relação à lei federal. Segundo a Ancine, tais particularidades aumentam o leque de brasileiros com direito a usufruir do desconto.
Posicionamentos
No começo de agosto, o Ministério da Economia, em resposta à consulta pública encabeçada pela Ancine, descartou a possibilidade de reformulação da lei, ao se posicionar a favor da extinção total do benefício que garante o desconto no preço dos ingressos para eventos e espaços culturais.
Já a União Nacional dos Estudantes (UNE) se posicionou nas redes sociais defendendo a permanência da lei e classificou a proposta do Ministério da Economia como “um retrocesso total”.
A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) também se posicionou sobre o assunto nas redes sociais defendendo a vigência da lei.
A estudante de cinema, Cláudia* é contra a extinção da lei federal da meia-entrada e ressalta que a lei é uma forma de democratizar o acesso à cultura em um país tão desigual como o Brasil. “Você pensa em uma família de quatro integrantes, com pais que ganham um salário mínimo. Como que um casal pode levar os dois filhos ao cinema num dia de domingo com esse preço que é já é difícil? Imagina se acabar com a lei? Isso vai dificultar cada vez mais o acesso das pessoas mais pobres a esses lugares”, afirma a estudante.
Robertson Mayrink, professor de cinema da PUC Minas, explica que a possibilidade da extinção da lei da meia-entrada é um fator que contribui para enfraquecer o acesso dos brasileiros às produções cinematográficas nacionais, em detrimento de filmes estrangeiros, sobretudo os blockbusters americanos. Ele também aponta que a retirada do benefício fortalece a ascensão das plataformas de streaming estrangeiras, cujo catálogo não oferece grande volume de filmes brasileiros.
Confira a entrevista completa sobre os possíveis impactos da extinção da lei:
*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.