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“Agora só falta você”: Um ano sem Rita Lee

Imagem: Júlia Vida.

“Há muito tempo, uma mulher sentou-se e leu na bola de cristal que uma menina loira ia vir de uma cidade industrial de bicicleta, de bermuda, mutante, bonita, solta, decidida, cheia de vida, etc e tal”. Foram essas as palavras escolhidas pelos “Doces Bárbaros” Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil na música “Quando” para descrever Rita Lee, figura que, há um ano, nos deixou depois de ter ultrapassado os limites do convencional, trazendo uma aura de rebeldia e originalidade que marcou gerações. 

Para os milhões de fãs que Rita conquistou ao longo de décadas, o primeiro ano de sua morte representa uma mistura de saudade e celebração, já que, em seus corações, a artista sempre permanecerá viva. Lee não era apenas uma cantora talentosa, mas um verdadeiro ícone nacional. Sua voz única, suas letras provocativas e sua atitude irreverente e autêntica são não apenas uma grande contribuição para a música, mas também simbolizam seu papel como uma figura de resistência e liberdade. 

Neste texto de homenagem, o Colab revisita  a história dessa verdadeira lenda da música, cuja personalidade marcante continuará a inspirar e permanecerá na memória e no coração dos brasileiros por muitos anos. 

Origens e infância de Rita

Nascida na capital paulista em 31 de dezembro de 1947, Rita Lee Jones de Carvalho cresceu em uma família de classe média no bairro da Vila Mariana, onde a mesma afirmou ter vivido grandes momentos. Filha de Charles Fanley Jones, dentista e filho de imigrantes estadunidenses, e de Romilda Padula, pianista de descendência italiana, que sempre incentivou a filha a estudar o instrumento, Rita teve duas irmãs, Mary e Virgínia, e era a mais nova das três.

Rita ainda criança, em foto familiar. Imagem: Arquivo Nacional

Na infância, estudou em uma das mais tradicionais instituições de ensino paulistas, o colégio francês Liceu Pasteur, onde aprendeu a língua. Além do português e do francês, a cantora também era fluente em inglês, espanhol e italiano. “Meu pai podia economizar na carne moída em vez de filé-mignon, mas em matéria de educação não poupava tostão”, contou Lee em um trecho de “Rita Lee: Uma Autobiografia”, livro lançado em 2016. A obra  revelou aos fãs intimidades e passagens pouco conhecidas da trajetória da cantora, chegou a ser campeão de vendas e eleito a melhor biografia do ano pela Associação Paulista de Críticos de Artes.

Ainda quando criança, seguindo os passos de sua mãe, a artista fez aulas de piano, mas sonhava mesmo em ser atriz de cinema. Mesmo depois de muitos anos Rita revelou, no programa “Conversa com Bial”, exibido em 2017, gostar mais da sétima arte do que da música. Seu real interesse pela música surgiu na adolescência, época em que escreveu suas primeiras composições. A futura cantora tinha como inspiração não só cantores brasileiros, como João Gilberto, Cauby Peixoto e Carmen Miranda, mas também grandes bandas de rock internacionais, como The Beatles e Rolling Stones.

Em 1968, Rita chegou a ingressar em Comunicação Social na Universidade de São Paulo (USP) mas, logo no primeiro semestre, abandonou o curso para se dedicar completamente à música. “Passei um ano vagabundando na USP, na base do “assina a presença pra mim”, revelou em sua autobiografia.

Trajetória na música

Com mais de 300 composições, Rita Lee foi essencial na revolução do rock brasileiro e no disparo do tropicalismo. Além de ter feito parte d’Os Mutantes, uma das bandas de rock do país mais aclamadas no mundo e, em sua carreira solo, lançou músicas com enorme apelo popular sem perder sua personalidade, tornando-se referência para diversos artistas posteriores no pop nacional. O título de “rainha do rock brasileiro” veio naturalmente – mas Rita achava “brega”, preferia ser chamada de “padroeira da liberdade”.

A trajetória de Lee na música começou na infância, época em que fazia aulas de piano. Mas o real interesse surgiu na adolescência, quando começou a compor suas primeiras canções. Em 1963, com apenas 16 anos, Rita se juntou com duas amigas e criou o grupo amador Teenage Singers, que apresentava pequenos shows em festas da escola. Certa vez, o cantor e produtor Tony Campello descobriu as jovens garotas e as convidou para participar de algumas gravações como backing vocals. 

Algum tempo depois, durante um festival de bandas do colégio, o então trio feminino conheceu o grupo de música instrumental Wooden Faces. Os dois conjuntos se juntaram, formando o Six Sided Rockers, posteriormente batizado de O’Seis, que chegou a gravar duas músicas em estúdio, resultando no primeiro compacto da carreira de Rita. Em seguida, três integrantes do sexteto abandonaram o grupo, deixando Lee e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, que batizaram o novo grupo como Os Bruxos.

Os Mutantes em 1969; da esquerda para a direita: Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias. Imagem: Arquivo Nacional.

Em 1966, o trio estreou como elenco fixo do programa de Ronnie Von e renomeou o grupo. Assim, nasceu Os Mutantes, tendo como inspiração The Beatles, entre outras bandas de sucesso da época. O trio unia, experimentalmente, a psicodelia aos ritmos locais e se tornava o grupo brasileiro com maior reconhecimento entre ícones de rock pelo mundo. Foram considerados um dos principais membros do tropicalismo, movimento cultural brasileiro dos anos 1960 que marcou diversas formas de expressão artística, e do cenário musical nacional, marcando presença constante nos principais programas de TV da época.

Os Mutantes marcaram presença em dois grandes símbolos da tropicália: acompanhando Gilberto Gil no 3º Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, e Caetano Veloso no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968. Nesse mesmo ano, também participou de Tropicália ou Panis et Circensis, álbum fundamental do movimento. A banda também lançou seis álbuns durante seus anos em vigor, estando entre eles Os Mutantes, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado e Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets.

Durante sua vida, Rita Lee passou por dois casamentos, sendo o primeiro com seu parceiro de palco do grupo Mutantes Arnaldo Baptista, relacionamento que teve início em 1968. Em 1971, eles se casaram, entretanto, o casamento não durou muito tempo. Rumores apontam que o relacionamento era conturbado. Rita conta em sua autobiografia que Arnaldo chegou, inclusive, a expulsá-la do grupo musical. 

Essa união agitada teve um fim surpreendente na TV brasileira, que chocou o público na época: o ex-casal rasgou a certidão de casamento no programa de Hebe Camargo, ao vivo, confirmando os boatos e oficializando publicamente o fim do matrimônio. Além disso, em entrevistas posteriores e em sua autobiografia, a cantora revelou que o casamento não passou de uma fachada. Cansada da “fama de vadia” e buscando ganhar independência dos pais, Rita viu a união como uma “solução”.

O fim do relacionamento, em 1972, resultou também no fim da passagem de Lee pela banda. Nesse mesmo ano, a cantora foi expulsa do grupo pelo ex-parceiro. A artista contou em sua autobiografia que Arnaldo alegou que queria seguir caminhos no rock psicodélico e ela não se enquadrava nesse estilo para mandá-la embora do trio.

Logo após sua saída d’Os Mutantes, Rita Lee se juntou com a amiga Lúcia Turnbull e montou a dupla feminina Cilibrinas do Éden. Porém, a recepção do público ao novo projeto musical não foi das mais calorosas, o que fez a cantora perceber que precisava de uma banda de rock para acompanhá-las. Nesse momento, Rita convidou o grupo já existente Lisergia, formado por Luis Sérgio Carlini, Lee Marcucci e Emilson Colantonio, para compor suas apresentações. Em agosto de 1973, realizou o show de lançamento da nova carreira, batizado de Tutti Frutti, nome que acabou acompanhando a banda posteriormente. 

Nessa fase de sua carreira, Rita lançou um de seus maiores álbuns, o Fruto Proibido, considerado um dos principais discos do rock brasileiro, com músicas que revelaram mudanças sociais, políticas e culturais do Brasil na época, vendendo mais de 700 mil cópias. Ele contava com algumas das músicas mais populares da carreira de Rita, como Agora Só Falta Você e Ovelha Negra, que levaram à cantora o apelido de Rainha do Rock Brasileiro.

O segundo casamento da artista foi com o também cantor Roberto de Carvalho, que resultou em uma parceria não só amorosa, mas também musical. Não muito depois do primeiro matrimônio, em 1976, eles se casaram, união que perdurou até o fim da vida de Lee, em 2023. Juntos, Rita e Roberto tiveram três filhos: Beto Lee, cantor e compositor, como a mãe, Antônio Lee, artista plástico, e João Lee, DJ e produtor musical. Tiveram ainda dois netos, Izabella e Arthur.

Pouco tempo depois, com a nova parceria musical e amorosa, Rita e Roberto, já namorados, decidiram seguir como dupla. A parceria do casal consagrou a cantora como artista popular, quebrando as fronteiras entre o rock e o pop. Com o passar dos anos, lançaram diversos hits nacionais, como Lança Perfume, Desculpe o Auê e Doce Vampiro, emplacaram turnês de sucesso, temas de novelas e grandes shows. Juntos, fizeram a primeira participação no Rock in Rio. Em 1990, após o lançamento do álbum Rita e Roberto, o casal decidiu que seria melhor ambos seguirem carreira solo.

A primeira turnê da nova fase musical de Rita foi em 1993. Fez parceria com diversos artistas, como Cássia Eller e Caetano Veloso, nunca deixando de flertar com diversos gêneros da música. Em 2001 teve o álbum 3001, cheio de clássicos de Lee como Erva Venenosa e Amor em Pedaços considerado o Melhor Disco de Rock em Língua Portuguesa no Grammy Latino. 

Daí pra frente, a maioria dos discos da artista foram super premiados, como Balacobaco (2003) e seu Acústico MTV Ao Vivo (2004), ambos Disco de Ouro em menos de um mês. Em 2008, Rita entrou na Lista dos 100 Maiores Artistas da Música Brasileira, criada pela Revista Rolling Stone. Seu último álbum de canções inéditas em estúdio, Reza, definido por ela como “reza de proteção de invejas, raivas e pragas” saiu em 2012 e chegou a concorrer ao Grammy Latino na categoria melhor disco pop contemporâneo. Rita ainda recebeu, em 2022, o prêmio de Excelência Musical pelo conjunto da obra.

Problemas com drogas e reabilitação

No auge de sua carreira, Rita passou por episódios de internação por abuso de álcool e drogas. Em 1996, chegou a sofrer um acidente causado pelo abuso de remédios,  em que caiu da varanda do segundo andar de seu sítio e fraturou o maxilar, acidente que a impediu de cantar por um tempo. Após isso, tentou largar as substâncias, mas contou em uma entrevista ao “Fantástico” que só conseguiu fazer isso em 2006, após procurar ajuda em uma clínica de reabilitação.  “Estou limpa há 11 anos, desde que minha neta nasceu. Canalizei minha energia e estou achando muito louco esse negócio de ser careta”, relatou em sua participação no programa “Conversa Com Bial”, em 2017.

Rita Lee além da música

Não foi apenas nos palcos que Rita Lee foi brilhante, talentosa e fez sucesso. A artista multifacetada e revolucionária também deixou sua marca em diversas outras esferas da cultura brasileira. Sua habilidade de expressão única não se limitou às letras de suas composições, também encontrou espaço nas páginas de seus livros, entrevistas, cenas de novelas e muito mais, fazendo-a ser reconhecida até em questões sociais e políticas. De fato, Rita provou que a arte é um meio valioso de expressão de ideias e valores. 

Os últimos anos de Rita

Em 2012, após mais de quatro décadas de carreira, Rita Lee anunciou sua aposentadoria dos palcos para cuidar de sua saúde. Na época, por meio de sua página no antigo Twitter, atual X, declarou: “me aposento dos shows, mas da música nunca”. Ainda assim, Rita Lee fez algumas aparições em shows depois do anúncio, como o que aconteceu em São Paulo em comemoração aos 459 anos da cidade, quando foi ovacionada pelo público.

A situação de saúde da cantora se agravou mesmo em 2021, quando foi diagnosticada com um câncer primário no pulmão esquerdo. Desde então, iniciou tratamentos de imunoterapia e radioterapia. Em abril de 2022, foi anunciado que a cantora estava curada. “A cura da minha mãe me emocionou pra caralho. Melhor notícia de todos os tempos. Manteve a cabeça erguida, com vontade de lutar e encarou tudo com seu bom humor habitual, tanto que apelidou o tumor de “Jair”. That´s Rita”, contou Beto Lee, seu filho primogênito, em seu Instagram reafirmando a singularidade e autenticidade da mãe.

Rita Lee passou seus anos finais em um sítio no interior de São Paulo com a família. Desde o início de 2023, sentia-se debilitada, chegando a ser internada no final de fevereiro. No dia 14 de abril desse mesmo ano, a artista fez sua última aparição pública, acompanhando de casa a homenagem que o Altas Horas, programa do qual Rita era considerada madrinha por ter sido a primeira artista a pisar no palco durante a estreia, fazia à sua carreira. 

Na noite de 8 de maio de 2023, uma segunda-feira, Rita Lee Jones de Carvalho faleceu, aos 75 anos. No dia seguinte, sua família divulgou um comunicado no Instagram da cantora para avisar aos amigos e fãs sobre seu falecimento: “Comunicamos o falecimento de Rita Lee, em sua residência, em São Paulo, capital, no final da noite de ontem, cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou”.

O velório de Rita foi realizado na quarta-feira, 10 de maio, no Planetário do Parque Ibirapuera, local que trazia memórias afetivas para a cantora. Durante a cerimônia de despedida, João Lee, um dos filhos da artista, declarou lindas palavras sobre a falecida mãe: “É uma loucura a quantidade de realizações que ela teve, mas não é por isso que ela é minha heroína. Ela é minha heroína pela simplicidade, pela dignidade, pela honestidade que ela vivia, dia a dia, mês a mês, ano a ano. Era uma loucura a dignidade dela, a sensibilidade dela de lidar com as pessoas, de entender as pessoas, a forma que ela tinha de se comunicar com o público, com o mundo, uma pessoa muito única”, contou, agradecendo o privilégio de conviver 43 anos com Rita Lee.

A comoção nacional com a morte da cantora foi tamanha que o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, decretou luto oficial de três dias em pesar pelo falecimento. “Uma artista à frente do seu tempo. Julgava inapropriado o título de rainha do rock, mas o apelido faz jus à sua trajetória”, declarou. O legado deixado por Rita Lee, eternizado por suas palavras, escritas ou cantadas, para sempre farão os fãs se sentirem como ela mesma declarou no final de sua autobiografia:

A sorte de ter sido eu, de ter sido quem eu sou, de estar onde eu estou, não é nada se comparada ao meu maior gol. Sim, acho que fiz um monte de gente feliz”.

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