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A responsabilidade midiática na cobertura de conflitos políticos ao redor do mundo

Imagem de um mapa mundi com zoom focado no Afeganistão

Dentre os diversos conflitos políticos noticiados ao redor do globo, um dos que esteve mais em evidência nos últimos meses é o que acontece entre Afeganistão e Talibã. Para entendê-lo, é preciso saber que trata-se de um país com características muito ímpares. “Antes da invasão soviética e do final dos anos 1970, o Afeganistão experimentava algo muito mais parecido com o que nós, no ocidente, vivíamos, com relação a costumes, direitos humanos, etc. Hoje, tirando Kabul, que é a capital e que concentra a maior parte da população do país, o restante [da população] vive em classes muito dominadas por uma estrutura arcaica.”, explica a jornalista, professora e doutora em Relações Internacionais, Rita Louback.

Desde agosto de 2021, quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ordenou a retirada de seus exércitos do território afegão, brechas foram abertas para que uma nova dominação do Talibã no país ocorresse. As tropas norte-americanas ocupavam o Afeganistão desde 2001, como um elemento da chamada “Guerra ao Terror”, e simbolizavam uma resposta do governo estadunidense aos ataques terroristas de 11 de setembro. Embora essa intervenção militar não tenha sido historicamente positiva para a população afegã,  o poder bélico americano fez com que as tropas extremistas se retirassem, trazendo estabilidade ao país.

Com a decisão de Biden, os soldados, que antes guardavam as cidades e as mantinham sob controle estrangeiro, abandonaram suas bases e voltaram para casa, deixando a população afegã à mercê do extremismo taliban. O decreto teve uma grande repercussão e, poucas horas após a decolagem do último avião rumo aos EUA, jornais do mundo inteiro noticiaram a angústia de milhares de pessoas nos aeroportos e ruas de Kabul. A partir daquele momento, o Talibã havia retomado o comando do país.

Estereótipos e seus impactos na interpretação de conflitos

Rita Louback explica que a transmissão de uma visão estereotipada do islamismo pode interferir na interpretação da sociedade ocidental sobre os conflitos no Afeganistão. “A consequência é que se eu não compreendo um determinado contexto, ou seja, a conjuntura internacional, o cenário internacional tende a correr o risco de repetir esses mesmos erros”, explica. “Não está se entendendo muito bem o que se passa lá no Afeganistão, com o agravante dessa questão religiosa, que é uma interpretação extremista de uma religião que, por sua vez, infelizmente dá margem a coisas assim”, completa a professora.

Mozahir Salomão Bruck,  doutor em Ciências da Comunicação e Diretor da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas, complementa  que as informações impactam os indivíduos dos modos mais distintos e em função das mais distintas fontes. Com isso, é possível compreender que o modo como esse assunto é repassado a estudantes de comunicação, por exemplo, que serão os próximos a noticiar tais conflitos, pode interferir na interpretação da sociedade ocidental sobre o tema no futuro “Referências como professores e profissionais, dados os lugares que ocupam e a autoridade que possuem, tendem mesmo a ser consideradas de modo mais efetivo. E tais perspectivas se juntam e associam ao repertório que cada um constrói dentro de suas possibilidades, potências e limitações”, explica. “O quanto elas pesam? Difícil dizer. Mas certamente tendem a não serem desprezadas”.

Mozahir pontua que o capital cultural resulta de contextos e operações complexas. “Mesmo esses actantes – professor e profissionais – tendo sua importância, a construção social da realidade, como nos mostram Berger e Luckmann (2007) é nutrida muito por outras interações face a face: o grupo familiar, amigos, vizinhos e por aí vai”. Nessa ótica, as perspectivas são formadas pela combinação entre os valores dos que se relacionam diretamente conosco, os valores com os quais a escola trabalha e aqueles que as mídias nos entregam. “Tudo isso tendo como pano de fundo a invisibilidade ordenadora  e desordenadora da ideologia”, ressalta o professor.

A construção da imagem do islamismo no ocidente

Por sua natureza alarmante, o anúncio de que uma organização terrorista havia tomado conta de um território nacional pela segunda vez em 20 anos despertou um alarde nas mídias sociais e redações jornalísticas de todo o planeta. Foram milhares de notícias e postagens denunciando os casos extremos de misoginia impostos pelo Talibã, além de críticas à violência cultuada pelo grupo e aos retrocessos que a população afegã voltaria a vivenciar em breve.

Aumento no índice de buscas pelos termos “Talibã” e “Afeganistão” no Google durante o mês de agosto de 2021, segundo a ferramenta Google Trends

Mas essas não foram as únicas preocupações dos espectadores em meio ao conflito. A partir de pontos de vista cristãos e ocidentalizados, muitas pessoas expressaram suposições que partiam da demonização do uso de burcas, niqabs e hijabs e se estendiam até a propagação de frases explicitamente islamofóbicas. 

Ismail Omais, estudante de odontologia da Unic e membro do Departamento Acadêmico Islâmico (DAI), afirma que, em representações midiáticas de sua religão, é possível perceber muita islamofobia. “A imagem propagada do islamismo na mídia é, na maioria das vezes – para não dizer todas as vezes -, errônea”, diz. Ele recorda que, em produções cinematográficas que representam muçulmanos ou algum país muçulmano, por exemplo, há sempre o estereótipo de um país extremista. “É um país machista em que a mulher tem que tirar o véu pra ser feliz, tem que beber pra ser feliz e o bom rapaz é sempre o rapaz americano que ajuda ela, né? Isso é uma forma bem errada do islamismo”

Essa visão não está restrita às produções ficcionais. A mídia e as plataformas sociais também têm responsabilidade na  propagação de estereótipos em relação aos costumes da religião muçulmana. Ismail pontua que esse fenômeno é extremamente prejudicial para comunidades islâmicas, tanto no Brasil quanto no exterior: “As pessoas consomem a mídia e não vão atrás do conhecimento mais aprofundado, acabam ficando com pré-conceito forte e sólido sobre os muçulmanos”.

Diante de tudo isso, o acadêmico afirma que é difícil destruir preconceitos e realmente mostrar a verdadeira face do islamismo. “Isso acontece porque a informação mais fácil é aquela que as pessoas te passam, e não é aquela que você mesmo vai atrás”, comenta Ismail sobre as informações divulgadas erroneamente e repletas de estereótipos, em especial, nas redes sociais. “A ignorância é mil vezes mais confortável que o conhecimento”, completa. “A informação que vem com você de bandeja é muito mais fácil, então fica confortável, ao invés de buscar o seu próprio conhecimento e uma fonte mais verdadeira”.

Como abordar o islamismo e Afeganistão na mídia

Para realizar a cobertura de conflitos políticos, especialmente aqueles que ocorrem no Oriente Médio, é necessário cuidado redobrado para evitar a propagação da desinformação. A mídia poderia buscar informações mais concretas com líderes religiosos muçulmanos ou com pessoas civis muçulmanas que estão sofrendo com a situação. Não como as grandes mídias fazem quando falam de uma situação e não buscam conhecimento através das pessoas que estão realmente sofrendo. Eles estão buscando informações de fora, o que pode acabar distorcendo bastante a informação e o acontecimento”, diz Ismail Omais. 

Segundo Mozahir Salomão, o primeiro passo para os comunicadores seria a autocrítica pautada no reconhecimento de que diversidade, multiculturalismo, decolonialidade, alteridade não são apenas clichês a serem utilizados demagogicamente. “Não nos lembramos disso, em geral, para falarmos sequer de nossos povos originários, quanto mais de uma cultura tão estrangeira à nossa. Do mesmo jeito que a notícia é um valor transnacional, a ética jornalística também deve ser”, afirma.

“Não podemos nos esquecer que o jornalismo resulta de uma vontade da verdade, mas também de interesses políticos, econômicos materializados em narrativas atravessadas profundamente pelo cultural e pelo ideológico”, pontua o professor. “Ser cuidadoso e compreensivo, creio, significa desmontar clichês, estereótipos, preconceitos. Significa desfragmentar os quadros políticos, perscrutar-lhes os sentidos e buscar um jornalismo que não seja anti-histórico”, completa. Para ele, é preciso perceber a vida como processo, não como um conjunto desarticulado de acontecimentos.

Tudo está interligado. Não é uma fórmula, claro. Mas o primeiro passo me parece ser este: buscar perceber o mundo em sua complexidade e que a luta pelo poder é o motor do mundo“.

Professor Mozahir Salomão

Reportagem produzida por Dara Russo e Julia Santos.

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