Quase três mil quilômetros separam Pacaraima (RR) e Belo Horizonte (MG), capital da região Sudeste mais próxima. O município que faz fronteira com a Venezuela, país que enfrenta forte crise socioeconômica e humanitária, é uma das principais portas de entrada de migrantes e refugiados vindos do país vizinho. Entre 2017 e 2020, o Brasil recebeu 609.049 venezuelanos, de acordo com o Relatório Situacional Brasil, produzido pelo Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime (UNODC), o aumento da chegada de pessoas vindas da América Latina nos últimos anos indica uma mudança de perfil migratório no país. Por isso, em fevereiro de 2018, o Governo Federal iniciou a Operação Acolhida, com o objetivo de regular o fluxo migratório de pessoas vindas da Venezuela e diminuir a pressão humanitária no estado de Roraima.
Do Leste ao Oeste, do Oiapoque ao Chuí, esta reportagem vai apresentar as principais características da interiorização de imigrantes e refugiados pelo Brasil. De onde eles vêm? Por onde chegam e para onde vão? Como são recebidos e se adaptam ao Brasil? O Colab apresentará a distribuição pelo país, como funciona a Operação Acolhida, a avaliação de instituições que trabalham com esse público, depoimentos de imigrantes e refugiados, bem como a diferença entre esses termos, visto que ser migrante é uma condição distinta de ser refugiado.
Todo refugiado é migrante, mas nem todo migrante é refugiado
Migrantes, imigrantes e refugiados possuem conceitos e previsões legais distintas. De acordo com a Acnur (Agência da ONU Para Refugiados) Migrantes são aqueles que se deslocam por motivos que não envolvem temor de perseguição em seu país. São protegidos pelas convenções internacionais de direitos humanos, considerando a migração enquanto fenômeno humano e estendendo direitos para além de fronteiras. Imigrantes são considerados pelo estado brasileiro como aqueles que são nacionais de um país estrangeiro e que o deixam com a pretensão de viverem no Brasil.
Refugiados, por sua vez, são protegidos pelo Direito Internacional dos Refugiados, fundado pela Convenção de Genebra de 1951, que considera a condição de refugiado como o indivíduo que se encontra fora de seu território nacional por temor de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política. Pelo princípio da não devolução e pelos riscos que uma volta ao país de origem proporcionariam, toda pessoa tem direito, com base nesse critério, a ter o pedido de refúgio analisado.
Nina Layotte, de 31 anos, é uma imigrante de nacionalidade francesa que veio da Colômbia para o Brasil em 2017, para trabalhar como professora de francês em institutos e universidades federais, em Belo Horizonte. Ela revela que a parte burocrática para imigrar para o país é bastante complicada. Segundo Nina, as leis são de difícil interpretação e as autoridades muitas vezes não se mostram receptivas em ajudar os migrantes. “É muito difícil, complicado. Tem uma coisa que fazemos na França [e que não é feita aqui] que é, quando tem uma lei para as pessoas fazerem trâmites, eles mudam as palavras para fazer um texto mais acessível às pessoas”, relata Nina.
A imigrante também relata dúvidas em relação à legislação, pois a resposta que recebia das pessoas responsáveis pelo processo era: “leia a lei, e se acessore com seu advogado”. Atualmente, ela mantém contato com imigrantes falantes da língua francesa, moradores de Belo Horizonte, principalmente de nacionalidade haitiana, e aponta que o principal problema enfrentado por eles está nessa parte jurídica.
Apesar de tudo, após realizar o processo de autorização de residência no país, Nina conheceu a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a instituição acompanha os migrantes durante o processo de pedido de moradia no Brasil e os auxilia na parte burocrática. Isso mostra que, principalmente em relação a questões migratórias, a ineficiência do estado em ajudar essas pessoas é superada pelas ações dessas ONGs.
De onde vêm e para onde vão
De acordo com dados do Censo Demográfico de 2010, naquela época residiam no Brasil 592.570 migrantes, dos quais portugueses e japoneses representavam as principais nacionalidades. Ao analisar a situação migratória do Brasil de 2011 a 2020, o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), divulgado em 2021, aponta que a maioria daqueles que migraram para o Brasil eram provenientes de países do Norte Global. Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentravam 61,4% dos migrantes do país, conforme os dados do IBGE referentes a 2010, cenário que mudou ao longo da década.
O Relatório Anual 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e refúgio no Brasil, da OBMigra, indica que 1,3 milhões de imigrantes residiam no Brasil em 2020, originários principalmente da Venezuela e do Haiti. O eixo Rio-São Paulo passou a concentrar 38%; Roraima 21,9% e a região Sul 16,8%. Em 2021, 72,2% das solicitações de reconhecimento da condição de refugiado foram registradas nos estados da região Norte. Pessoas haitianas e venezuelanas representavam 70,5% dos pedidos de refúgio.
De acordo com o Relatório Anual da OBMigra, as dificuldades de implementação de políticas públicas voltadas para a imigração nos países do Norte global, especialmente nos Estados Unidos e Europa, juntamente com uma grande crise no Ocidente em relação aos programas de recepção e integração dos imigrantes e ainda, a propagação do discurso anti-imigração, culminaram no aumento de migrações sul-sul para o Brasil.
Além disso, as crises políticas e econômicas em países do Sul Global no século XXI, explicam a mudança desse perfil dos migrantes. “Essas crises”, segundo o documento, “assumiram caráter de crise humanitária tal a degradação social, política e da economia locais.”
A atuação da ONU
Dentre os serviços ofertados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) está o Posto de Interiorização e Triagem (Pitrig), espaço que tem como objetivo recepcionar e auxiliar migrantes. Nesse local pode-se solicitar refúgio, residência temporária, emissão de Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), entre outros serviços. A partir da emissão de documentos, é possível acessar o mercado de trabalho formal no país. Para diminuir a pressão populacional no estado e simultaneamente oferecer aos migrantes a possibilidade de se integrar em outros estados, os Pitrig ajudam os migrantes no processo de deslocamento para o interior do país, se assim eles quiserem.
No site da Polícia Federal em Manaus existia, no momento da apuração desta reportagem, o seguinte aviso: “o atendimento aos migrantes venezuelanos e aos solicitantes de refúgio é realizado pela Polícia Federal dentro da Operação Acolhida, conforme data informada pelas Agências da ONU (OIM e Acnur).” Para migrantes de outros países, o atendimento é feito na sede da Superintendência Regional da Polícia Federal mediante agendamento por e-mail. Entramos em contato com a assessoria de comunicação da Polícia Federal para esclarecer como funciona a logística do atendimento para migrantes não venezuelanos, mas, até o momento, não obtivemos resposta. Ao tentar contato pelo telefone para a base da PF em Pacaraima para questões de migração e tráfico humano, a ligação não foi atendida.
Operação Acolhida
A operação é composta por órgãos governamentais, organismos internacionais e Organizações da Sociedade Civil. Conjuntamente, as entidades dessa operação são responsáveis pelo ordenamento da fronteira, abrigo e interiorização voluntária dos migrantes. Segundo Pedro Henrique de Moraes, membro da Coordenação Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), nem todos que chegam por Pacaraima solicitam reconhecimento da condição de refugiado. “Essas pessoas são cadastradas e a partir de ofertas de emprego previamente sinalizadas, são interiorizadas para várias cidades do Brasil. É um esforço de articulação entre estados, municípios e Governo Federal”, explica Moraes.
O processo de interiorização, pilar importante da Operação Acolhida, ofertada pela Acnur, consiste em proporcionar ao refugiado ou migrante estabilidade socioeconômica na chegada ao Brasil, país em que retomarão suas vidas. A força tarefa humanitária é categorizada em quatro modalidades: (I) institucional; (II) reunificação familiar; (III) reunião social; e (IV) vaga de emprego sinalizada.
A modalidade institucional realoca, principalmente, venezuelanos, em cidades do Brasil. Até o dia da apuração, 12.867 pessoas já foram beneficiadas por essa modalidade. A modalidade vaga de emprego sinalizada, por sua vez, é responsável por fornecer auxílio financeiro, por meio da Cash Based Intervention (CBI), até que o salário do mês seja recebido pela pessoa. Em caso de maior vulnerabilidade, o auxílio pode ser estendido por até 3 meses.
Importância da Interiorização
O diretor nacional do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), Padre Agnaldo Junior, detalha a importância do processo de interiorização dos migrantes, principalmente se tratando dos venezuelanos que se encontram no estado de Roraima. “Ao longo de um mês, temos cerca de 14.000 pessoas chegando ao estado de Roraima. Chegando mensalmente num estado pequeno, limítrofe. Um dos menores do país. Então assim, com várias dificuldades. O que gera um colapso de todos os serviços públicos de saúde, de moradia, de trabalho, de educação”, analisa o diretor do projeto.
Quando perguntado sobre o motivo de tantos venezuelanos escolherem o Brasil ao invés de outros países da América Latina que também falam a língua espanhola, o diretor do SJMR, diz que a proximidade geográfica, e a maior facilidade de conseguir o certificado de refugiado no país são um dos maiores atrativos para essas pessoas. Atualmente, apesar de ter mais de dois milhões de venezuelanos, a Colômbia possui apenas 500 desses com visto de refugiados, e o Brasil que possui cerca de 500 mil venezuelanos em seu território, sendo o quinto destino mais procurado por pessoas dessa nacionalidade, possui mais de 50 mil com visto de refúgio. Destaca-se também o fato de muitas dessas pessoas que se deslocam da Venezuela para o Brasil utilizam o país como moradia temporária para depois se deslocarem para países como Argentina ou Uruguai, países que utilizam a língua espanhola.
Benedito Portugal tem 30 anos e trabalha como autônomo em aplicativos, ele relata que também não contou com nenhuma ajuda do governo brasileiro. Para visitar sua noiva, agora esposa, cruzou o Oceano Atlântico de Moçambique até São Paulo e se hospedou na casa dos sogros e amigos. A dificuldade para conseguir regularizar a documentação foi ainda maior devido à pandemia: “muitos setores tinham atendimento limitado”.
Conteúdo produzido por Ana Brisa Reis, Ana Cecília Araújo, Ana Maria Pardinho, Caio Reis de Abreu, João Vitor Castro, Mariana Maia na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard. A edição foi realizada por Igor Vieira, Pedro Afonso, Matheus Eden, Leonardo Martini e Pedro Henrique Martins na disciplina Edição em Jornalismo, sob a supervisão da professora e jornalista Maiara Orlandini.