Quando falamos da Independência do Brasil, nomes como José Bonifácio, Francisco Gomes da Silva – mais conhecido como Chalaça – e Frei Caneca são constantemente mencionados e exaltados, deixando de lado mulheres que foram sistematicamente apagadas da história.
Como alerta a professora do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Patrícia Valim, existiu toda uma estrutura heteronormativa ligada ao predomínio dos homens na formação da sociedade brasileira. “A sociedade usava como dispositivo de controle o ideal de que a vida das mulheres era restrita ao casamento e à maternidade. No entanto, existiram aquelas que desafiaram constantemente esse sistema, tensionando o poder instituído da época”.
A professora ressalta, ainda, que “a ideia de liberdade que essas mulheres estão concebendo nesse momento de crise do Antigo Regime e na sequência com as lutas pela independência do Brasil de fato faz com que tenha que haver o reconhecimento de possibilidades múltiplas de outras formas de governo e Estado”, e que esse Estado poderia contar com a ocupação delas na esfera pública.
Em acréscimo, Patrícia indica formas de relembrar a história das heroínas da pátria. Ela menciona que é possível trabalhar essas trajetórias a partir de contextos maiores, pensando pela perspectiva das mulheres, na tentativa de sair da visão heteronormativa que ainda é ensinada para as gerações atuais. Para Patrícia, “é necessário estarmos à altura dos desafios da conjuntura e, quando resgatamos a história das mulheres, estamos à altura”
Chamar de volta ao coração
Em um esforço de reduzir a invisibilidade de histórias de mulheres que participaram direta ou indiretamente da Independência do Brasil, a roteirista e cientista social Antônia Pellegrino, em parceria com a historiadora Heloísa Starling, desenvolveu o podcast ‘Mulheres na Independência’, um original Globoplay.
Dividido em seis episódios, ele remonta à existência de seis heroínas brasileiras, que contribuíram, cada uma à sua maneira, e, a partir de lugares distintos, para diferentes conquistas da nação. A proposta do projeto, no ano do Bicentenário, é recordar a existência de grandes mulheres, valorizando suas histórias e feitos que caíram no esquecimento da memória popular, como Urânia Vanério, Maria Felipa e Bárbara de Alencar.
Lançar o podcast em um ano tão importante para o Brasil foi, para Antônia Pellegrino, uma forma de voltar a data ao coração. “Como diz a professora Heloísa Starling, comemorar significa recordar junto. E recordar quer dizer: chamar de volta ao coração. Acredito ser de enorme importância chamarmos as nossas heroínas da pátria, as mulheres que estavam lá quando o Brasil se tornou independente”. Segundo ela, as mulheres retratadas no podcast partiram de patamares e realidades diferentes de luta, mas todas tiveram um ideal político para o Brasil.
“São mulheres que lutaram, com as armas que tinham, por estes projetos”.
Antônia Pellegrino
No material de divulgação do podcast, a roteirista explica que o podcast pretende romper com a ideia de que houve um silêncio por parte das mulheres e que elas não fizeram parte do ciclo da Independência. O projeto pretende, então, restituir a grandeza de suas presenças à história oficial da independência, afirmando que sim, as mulheres estavam lá.
“Heroínas da pátria”
Para Antônia Pellegrino, é importante que essas mulheres sejam reconhecidas em seu lugar de pertencimento na memória ativa do povo.
Conheça abaixo algumas de suas histórias:
Hipólita Jacinta Teixeira de Melo
Uma das maiores inconfidentes, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo foi a pessoa que começou o levante da Conjuração Mineira após a morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Hipólita, que era dona da Fazenda da Ponta do Morro, próxima ao que hoje é a cidade de Tiradentes, deu as ordens para que se iniciasse o movimento com o chamado “Viva o Povo” e, para ela, “Quem não é capaz pras coisas não se meta nelas. E mais vale morrer com honra que viver com desonra”. Ela esteve envolvida no primeiro movimento anti colonial defendido no Brasil e, por mais que o levante não tenha se efetivado e as Minas não se tornaram uma república independente de Portugal, os conceitos defendidos na Conjuração criaram um novo vocabulário político brasileiro, dando incentivo e fôlego aos que viriam a seguir, conforme contam Heloísa e Antônia no podcast.
Bárbara de Alencar
Conhecida como Dona Bárbara do Crato, a primeira presa política brasileira, que incomodou tanto a alta sociedade brasileira que fez com que eles assumissem seus atos e a prendessem. Estamos falando de Bárbara de Alencar, uma viúva que morava na Fazenda do Pau Seco, Cariri, e estava em contato direto com os conceitos iluministas de liberdade graças ao seu amigo francês Monsieur Manuel de Arruda Câmara, naturalista que testemunhou a Revolução Francesa. A família Alencar, em especial Bárbara, foram peças centrais para a efetivação da Revolução Pernambucana, que clamava pela ideia de República. Após ter sido presa duas vezes, a heroína brasileira não desistiu de lutar pela liberdade de seu povo e logo se envolveu na Confederação do Equador. Bárbara foi símbolo de resistência e, de acordo com o podcast, promoveu grandes mudanças no sistema sexista brasileiro.
Maria Felipa
Mulher negra, capoeirista, pescadora e revolucionária, Maria Felipa teve papel fundamental na segurança de um dos pontos principais de resistência contra Portugal e a favor da independência, o chamado Recôncavo Baiano. Posicionado perto da Ilha de Itaparica, na Bahia, ele foi ponto de fuga para os revoltosos que fugiam do contra-ataque português em Salvador, causado por uma rebelião em prol da aliança com o Rio pela ruptura com Portugal. Com seus vastos conhecimentos do rio que dava acesso ao Recôncavo, a heroína impedia que os portugueses entrassem no local. Para além disso, ela foi líder de um batalhão de mulheres chamadas de Vedetas, que eram conhecidas por suas vestes brancas e vermelhas adornadas pelo ideograma Sankofa. Felipa, ao liderar esse grupo, se tornou elemento catalisador dos desejos de emancipação e, em 2018, foi incluída no Panteão de Heróis da Pátria. Para Antônia Pellegrino, no podcast “Mulheres na Independência”, “Sua trajetória pode nos ensinar a combater o silenciamento de mulheres negras e a violência que as ataca diariamente, e deixar que novas heroínas negras liderem o país rumo a mais liberdade e igualdade”
Maria Quitéria
Por fim, a mulher que foi considerada “heroína da independência”, Maria Quitéria. Ela se alistou no exército com o nome de seu cunhado, soldado Medeiros, ingressando então no batalhão dos “Voluntários do Príncipe Dom Pedro”. Após ter sido exposta pelo seu próprio pai, que não aceitava sua participação na batalha pela Independência, a baiana foi aceita como mulher no batalhão, já que era conhecida por seu esforço e obediência. Devido à sua enorme importância, Dom Pedro I escreveu uma carta ao pai de Maria Quitéria pedindo que ela fosse aceita novamente em casa após a conquista da Independência do Brasil. Ela se tornou então símbolo da emancipação feminina e foi condecorada patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro.