No ano de 2021, registraram-se 32,4 milhões de brasileiros no trabalho plataformizado, de acordo com pesquisa do Instituto Data Popular. Isso significa 20% da força operária nacional realizando serviços por meio de aplicativos digitais. O trabalho plataformizado virou parte da realidade cotidiana de pessoas ao redor do mundo, atraindo funcionários com discursos de flexibilidade de horário e autonomia, e causando mudanças na estrutura laboral moderna,
Em um processo já conhecido como uberização, trabalhadores se registram em apps para realizar serviços de maneira informal, sem carteira de trabalho, por pagamentos de valor variável. O exemplo mais comum disso é aquele que dá nome ao processo, a empresa Uber. O aplicativo de transporte de pessoas é um dos mais utilizados no mundo, com mais de um milhão de motoristas afiliados no Brasil no ano de 2021, de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Esta forma de contratação, sem vínculo empregatício, atrai trabalhadores de áreas diversas, ocupando espaço relevante na entrega de alimentos/mercadorias e trabalhos autônomos.
Trabalho plataformizado como forma de exploração
Embora o trabalho plataformizado venha com promessas positivas em relação às dinâmicas laborais, a prática já apresenta diversos problemas. De acordo com Lorena Vasconcelos, procuradora do Ministério Público do Trabalho há mais de 12 anos e doutora em Direito pela Universidade de Roma, empresas se utilizam desta forma de contratação para evitar prover o funcionário com certos direitos que seriam previstos por lei no trabalho formal, e evitar gastos.
A procuradora ainda aponta outras formas como o emprego por plataformas contribui para a exploração de servidores, como a individualização, tanto física quanto ideológica: “Trabalhadores na uberização não são concentrados, trabalham em locais dispersos e são vistos como autônomos. Isso dificulta a comunicação e união entre trabalhadores. Grande parte das associações trabalhistas que lutaram por seus direitos durante a 1° e 2° revolução industrial foram formadas em razão dos operários estarem reunidos no mesmo espaço, a fábrica, e se comunicarem.”
De forma geral, a uberização se impõe como uma mudança nas dinâmicas de trabalho favorável à exploração. Como colocado pela socióloga Ludmila Abílio, especialista em trabalho digital: “A uberização refere-se a um novo estágio da exploração do trabalho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como às formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho”. Segundo ela, trata-se de um novo passo nas terceirizações, que pode concorrer com o modelo anterior das redes de subcontratação compostas pelos mais diversos tipos de empresas.
Outra maneira de evitar o cumprimento de certos direitos no trabalho de plataforma é afastar a visão tradicional da relação entre patrão e funcionário. Quem compartilha dessa visão é o pesquisador de trabalho plataformizado e doutorando na London School of Economis (LSE), Abel Guerra. De acordo com Guerra, é muito comum ver o uso do seguinte argumento: quem mede o quanto o trabalhador ganha por suas horas trabalhadas é o algoritmo, não a empresa. Afastar-se da visão de “patrão” é uma tentativa de não responsabilização, colocando a corporação na posição de mediador.
A uberização no cenário internacional
O movimento de realizar contratações de funcionários por meio de aplicativos tem sido realizado no mundo inteiro, tendo, inclusive, seu início em países do norte global, e vindo, posteriormente, para países emergentes e em desenvolvimento. Nos países do norte global, historicamente com maior desenvolvimento dos direitos humanos e do bem-estar social, o cenário é de maior regulamentação e média de ganhos maiores.
No livro “Digital labour platforms and the future of work” , Janine Berg, doutora em economia na New School for Social Research, aponta que em países desenvolvidos, o pagamento por trabalhos de contratação em plataforma apresenta um caráter de renda complementar, diferentemente de países subdesenvolvidos/em desenvolvimento, onde o ganho por hora é menor e os trabalhadores, em maior parte, usam o pagamento como renda principal.
Segundo Lorena Vasconcelos, funcionários que utilizam desta forma de trabalho como tempo integral em países do norte global costumam ser migrantes não documentados. A procuradora apontou como certas empresas se aproveitam deste contingente de trabalhadores para buscar contratações não regulamentadas em condições análogas a escravidão.
O desemprego impulsiona o trabalho plataformizado
Do ano de 2016 até 2021, o número de trabalhadores brasileiros que passaram a trabalhar com entrega de mercadorias por aplicativos foi de 25 mil a quase 300 mil. O maior aumento foi durante o ano de 2020, com aproximadamente 70% de crescimento, de acordo com dados do IPEA.
Este último dado pode estar muito ligado à pandemia no país e seus efeitos, principalmente, o desemprego. Segundo pesquisa do IBGE, a taxa de desemprego no país teve seu pico em anos recentes, em 2020. O ambiente neste ano foi de muitos fechamentos de negócios por não funcionarem presencialmente e uma adaptação da venda de produtos online e por entrega, meio dominado pelo trabalho plataformizado. O espaço brasileiro na pandemia foi propenso para o crescimento da uberização no país.
Este texto é um dos cinco capítulos da série especial de reportagens do dossiê "Fronteiras", realizado por alunos do 5° período do curso de Jornalismo da PUC Minas para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital. Para acompanhar toda a reportagem, passe o mouse nos títulos abaixo e clique no capítulo de sua preferência: Capítulo 1: A realidade do trabalho plataformizado (Você está aqui) Capítulo 2: À espera do trabalho Capítulo 3: Viração: direitos trabalhistas em xeque Capítulo 4: Condições do trabalho na era digital Capítulo 5: Gig Economy e trabalho on-demand: direitos em falta
Próximo capítulo: “À espera do trabalho”
Agradecemos ao fotógrafo Lincoln Zarbietti pela seção de direitos de uso de suas imagens para ilustrar esta reportagem.