Reportagem exibida no Jornal Nacional do dia 22 de fevereiro de 2011 remete às manifestações no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, contra as mortes de Jefferson Coelho da Silva, 17 anos, e seu tio, Renilson Veriano da Silva, 39. Segundo a versão inicial da Polícia Militar (PM), os dois haviam morrido três dias antes, ao trocar tiros com policiais durante uma operação da corporação contra o tráfico de drogas na região. Ainda segundo o boletim de ocorrência, os dois vestiam fardas do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate).
Veja o local exato onde Jefferson e Renilson foram mortos
Sob protestos da comunidade, porém, autoridades chegaram à conclusão de que a verdade era outra: Jefferson e Renilson não tinham envolvimento com o tráfico de drogas e tampouco haviam trocado tiros com os oficiais. Segundo apontou a própria PM após as investigações, os policiais, ao matarem os dois homens, vestiram os corpos com as fardas e colocaram armas de fogo próximas às vítimas, forjando um eventual combate.
A Justiça também entendeu dessa forma e, três anos depois das mortes, dois policiais envolvidos na ação foram condenados a 23 anos de prisão, por homicídio qualificado e porte irregular de armas de fogo. Em 2017, a segunda instância do Poder Judiciário aumentou em três anos as penas.
Um terceiro militar apareceu morto em sua cela dois dias após sua prisão – expedida no dia 23. A conclusão da PM apontou suicídio, uma vez que ele, segundo a corporação, foi encontrado com um cordão enrolado no pescoço e atado no registro do chuveiro.
De acordo com especialistas e líderes comunitários ouvidos pela reportagem, o episódio foi o ponto de partida para mudanças no combate à criminalidade no aglomerado. “Logo depois, a população se revoltou de tal maneira que botou fogo em ônibus e organizou protestos. Abriu os olhos da imprensa e do poder público para aquela versão que estava muito esquisita”, relembra o jornalista Renato Rios Neto, apresentador de um programa de segurança pública da Rádio Itatiaia.
Foi um fato que eu acredito que nessa história recente da Serra significou uma virada de página
Renato Rios Neto, jornalista da Rádio Itatiaia
A opinião também é compartilhada por Rogério Rêgo, líder comunitário do aglomerado e conselheiro tutelar. Segundo ele, o episódio contribuiu para que a população local entendesse que a forma como as operações da Polícia Militar eram conduzidas representava um problema para a comunidade e não apenas para as famílias de envolvidos com o tráfico.
“Antes, ficava uma coisa muito fora da comunidade: ‘você quer se envolver com o tráfico, se envolva. Não quer, não se envolva’. Mas depois que aconteceram essas mortes, a comunidade acordou e disse: ‘não, o problema é nosso’. Porque um jovem que está envolvido no tráfico pode ter um irmão que é da igreja, que não tem nada a ver, que é trabalhador. A favela mistura o sacro com o profano, a gente está muito próximo de todo mundo”, considera Rêgo.
As manifestações, porém, não foram tranquilas: tiros eram ouvidos paulatinamente na região, ônibus foram queimados e escolas tiveram que ser fechadas. Ao mesmo tempo, protestos pacíficos tomaram conta da Praça do Cardoso, um dos principais pontos do aglomerado. Por lá, também passa a avenida que leva o mesmo nome da praça, mas que hoje é chamada pelos moradores de Jefferson Coelho da Silva, em homenagem a uma das vítimas.
Por dias, como relembra Rêgo, a praça se tornou o ponto das atenções em relação ao conflito e era onde a maioria dos jornalistas se concentrava para cobrir os acontecimentos após o crime. Paralelamente, para tentar conter as manifestações violentas, a Polícia Militar enviou, à época, 80 oficiais para o aglomerado. “O pessoal vaiava os policiais”, conta.
O repórter da TV Record Vinícius Araújo também acompanhou de perto os acontecimentos da época. Acostumado com a cobertura policial, trabalho que faz há quase 20 anos, ele afirma ter se assustado, muitas vezes, com as reações da população do aglomerado. “A gente, às vezes, estava na Praça do Cardoso e ouvia disparos no [Santana do] Cafezal [uma das vilas que compõem o aglomerado] ou em outras áreas. Isso ocorria com uma certa frequência e trouxe temor a todo mundo que estava envolvido nessa cobertura”, recorda.
Segundo ele, o episódio deixa, até hoje, marcas na relação entre a comunidade e os policiais, ainda que a corporação venha, desde então, investindo cada vez mais no fortalecimento dos laços com a população local.
“Eu percebo que a comunidade, de maneira geral, possui restrições com ações da polícia, devido à influência dos criminosos sobre a vida das pessoas. Todo mundo que mora no aglomerado conhece alguém envolvido no tráfico e, mesmo se essa pessoa é criminosa, ela recebe carinho. Pode ser alguém da família ou que cresceu junto. Então, quando ocorre um conflito e um suspeito é baleado ou morto, quem mora por ali vai se indispor e vai, de alguma maneira, achar que a polícia está agindo de forma errada”, analisa Araújo.
É justamente levando em consideração o convívio entre as forças de segurança e a comunidade que a Polícia Militar tem hoje no Aglomerado da Serra uma equipe de 25 policiais que fazem parte do Grupo Especializado de Policiamento em Áreas de Risco (Gepar), programa criado no início da década de 2000 e que foi ganhando corpo ao longo dos anos. Segundo a corporação, o grupo tem a função de combater crimes violentos em áreas de risco, com ações baseadas na relação mútua com a população local.
“A comunidade tem um fator preponderante para que as atividades da polícia ocorram de maneira tranquila e técnica. Os policiais militares, sobretudo do Gepar, são treinados e capacitados em matérias de polícia comunitária e direitos humanos. Erros podem acontecer e vão acontecer certamente. Agora eles não são tolerados de maneira alguma”, afirma o tenente-coronel Gilbran Maciel, comandante do 22º batalhão da PMMG, responsável pelo patrulhamento no aglomerado.
Sobre as mortes e os protestos de 2011, Maciel considera que, embora o episódio tenha contribuído para a revolta dos moradores da região com os policiais, a prisão dos militares envolvidos pode, de certa forma, ter aumentado a confiança na PM. “Isso aí já gera um senso de credibilidade junto à comunidade. Quando a gente acerta e quando a gente erra, não só a comunidade, o próprio público interno vê isso como um fator importante”, diz.
Esse texto, o segundo da série de reportagens “Aglomerado da Serra: (In)segurança”, termina com uma homenagem a Jefferson Coelho da Silva, publicada por amigos da vítima no Youtube dois anos após a sua morte. A reportagem seguinte apresentará as mudanças implementadas na região após o episódio.
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Esta série de reportagens foi produzida por Ana Mendonça, Bernardo Drummond, Felipe Quintella, Marcelo de Angelis, Pedro Lovisi e Victor Silveira como Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo da PUC Minas, sob orientação da professora Fernanda Nalon Sanglard.