Por: Nicholas Correa
Já visto, jamais visto, o filme derradeiro de Andrea Tonacci, é uma antologia pessoal que reúne diversos materiais cuja maioria era inédita até então, incluindo segmentos de filmes não finalizados pelo diretor. Tonacci, que desde Blablablá se mostrava consciente de sua condição de artífice de imagens, dispõe esses arquivos à maneira de Jonas Mekas em que nenhuma instância (vídeo caseiro, ficção ou registro histórico) parece se sobressair em relação a outra, todas possuem uma mesma aproximação no fluxo imagético que compõe a unidade do filme. O ato de assimilação dessas imagens é guiado como uma experiência de constante descoberta e re-significação do passado pelo presente.
Seja nas cenas em que Tonacci e o filho viajam para locações medievais, quando um menino acha uma chave dentro de uma urna antiga enterrada no quintal, a ação do cineasta com suas imagens torna-se a de um necromante. Descobrimos um mundo que, se uma vez existiu, já se des-balizou, um mundo que não existe mais fora daquelas imagens granuladas e ruidosas. O crítico Serge Daney, em seu texto Sobre Salador (Cinema e publicidade), notava uma crença ingênua no real, de “uma confiança literalmente cega no visível”, sobre a qual boa parte do cinema é concebido e lançava a possibilidade de um cinema que trabalhasse a sua especificidade pictórica:
“A menos que um cinema crítico – não se contentando mais com essa fuga antecipada, essa necessidade do jamais-visto que não pode se esgotar sem ser satisfeita – decida ver em cada significante pró-fílmico já um significado que ele vai tratar de descobrir, nomear, desnaturalizar. A relação desse cinema com a fotologia seria um modo na qual ele denunciaria (ou não) a falsa inocência do real, desse real que é para ele apenas o já filmado.”
Tanto o filme quanto o texto de Daney culminam em O desprezo (Daney com o filme de Jean-Luc Godard, Tonacci com o romance de Alberto Moravia), uma das obras seminais sobre essa crise da organização material no exercício do cinema. O que testemunhamos em Já visto, jamais visto é essa relação crítica entre o mundo e os dispositivos fílmicos, importa ao filme justamente a fisicalidade do celulóide e o ruído da imagem digital. Quando Tonacci lê Alberto Moravia em um quarto mal iluminado, a cena não só aparenta como de fato emana de um outro mundo, o mundo delimitado da imagem e da palavra.
Seja criando um real fantástico ou dando uma sobrevida fílmica a um real passado a partir de sua demiurgia, Já visto, jamais visto é a obra de um legítimo necromante que, ao olhar para suas memórias, se deslumbra na descoberta de um novo mundo. O fato de que este tenha sido o último trabalho de Tonacci antes de sua morte confere à obra um contorno trágico. A cena em que ele cita o seu nome em uma conversa por telefone, de modo a afirmar sua própria existência dentro daquele mundo, é agora também a sua sobrevida nesta que é uma das obras mais importantes da década.